Fim
Ao começo todo era um, sem forma,
e o mundo foi tecendo-se a si mesmo,
lentamente, até chegar aqui.
Consumiu-se o tempo,
fazendo florescer esta esfera.
Erigiu, então, cidades nela
a través de nós.
Depois,
iluminou o mundo por segunda vez,
como hipnotizando-se com o pêndulo próprio.
Agora,
não reconheço já esta terra.
– Venho a salvar-te – sussurrou o silêncio,
e entregou-me a fortuna e o êxito.
O mundo é meu agora.
Nalguma tenda do deserto
vendem o fóssil da minha voz.
Desde então, conto os dias
na altura do pó que me sepulta.
Sou outro habitante estático
da dourada era da hipnose.
Quando lembro que estou fingindo,
descavalgo e abro as portas,
mas é já demasiado tarde.
Ao meu regresso,
escuto o teu olho de vidro estalar
como um futuro a ser alcançado.
E cravam-se-te as palavras na língua
quando me devolves o mundo.
– Algo terrível aconteceu na tua ausência.
A poesia está morta.
*
Acordar
Bem, toda história precisa um começo
e eu entreguei-te este.
Agora despertarei à água
para regar o mundo
com os meus versos.
Vou insuflar vida à pedra
como fizeram os judeus em Praga,
até escutar de novo o rugir da montanha.
Até que volte o calor à tua pele.
Regressa a humidade, pouco a pouco,
e inclinam-se os dias na sua presença.
Desejas-me tu nas noites
e a erva nas manhãs.
Sucedem-se nos céus
o sol e a lua
para contemplar-nos.
E retorna a vida,
lentamente,
aos meus olhos.
Caem os dias do Outono
e pousam no teu rosto.
Ensinas-me, então,
a dança da chuva.
É o regresso dos rios.
Eu contemplo-os longamente,
deixando-os desembocar
nos meus olhos.
Tens sorte de ter nascido aqui,
penso ao ver como sorris ao dilúvio,
e eu tenho sorte de ter-te encontrado.
E, ao fim, o mar.
A tua pele quente,
com sabor a sal.
E os nossos futuros
entrelaçados.
*
Ostentação
Às vezes, sinto que estou a ponto
de despertar da vida.
Às vezes, dou-lhe a volta aos olhos
e, como num sonho,
não lembro o começo.
Quero cair cara acima,
até o lugar ao que pertenço.
Como quando fugi de aqui,
como quando voltei, derrotado.
Já não creio em nada.
Percorro a terra,
quilómetro a quilómetro,
para confirmar que existe.
Nasci tarde,
está já tudo escrito.
Por sorte,
tenho um Deus domesticado,
ditando-me versos ao ouvido.
A vida hackeada,
as portas abertas.
Tu ao meu lado.
Os lábios rotos
de beijar ao caminho.
Uma língua de ouro,
banhada em carne.
O meu coração é
um museu de versos.
O meu futuro…
Transparente.
Amava este caderno
quando estava em branco.
Quando era só expectativa.
Tu és o único neste mundo
que prefiro ter a imaginar.
*
Das luzes
O futuro dá-me medo.
Nunca antes sentira isto.
A minha vida é agora
como a água estancada.
Como um monumento
ao tempo perdido.
Arrasta-me o tempo
de pantalha em pantalha,
apodreço entre as luzes,
esqueço os sonhos e, ao fim,
já não lembro ter esquecido.
Às vezes, sinto que sou só olhos,
que despertarei no fim,
velho e vencido.
E, a verdade, tenho um mal presságio.
É como um eco pesado e antigo.
Quando fecho os olhos
vejo à gente, em massa, entrando em jaulas.
Comendo a chave, logo, por vontade própria.
E eu quero sair do caminho.
Voltar a tocar o mundo com as mãos.
Correr como um neno
que descobre a vida.
Encontrar-te de novo.
Despir-me, saltar ao rio,
que me acarinhe a corrente,
e, obviamente,
não deixar-me levar.
*
A realidade
Vivo a minha vida
pensando em escrevê-la.
E isso complica terrivelmente tudo.
Porque já não sei
que fica fora da história.
Porque não consigo
resistir-me ao relato.
E sinto que esqueci algo,
como um infiltrado em chão inimigo
que não lembra já a sua missão.
De feito,
levo tempo sem ver a porta.
Tal vez esteja apresado.
Às vezes,
persegue-me o tempo pelas ruas molhadas,
mordendo a sombra que me expecta.
Às vezes,
persigo ao tempo pelas ruas molhadas
com a morte a latejar no peito.
É uma canção que escutei nalgum sítio.
Acaba-se-me o tempo aqui
e não aprendi nada.
Vivo em silêncio,
atesourando histórias
que morrerão comigo.
A minha vida é uma onda na água,
superpondo-se ao mundo.
Uma coleção de coincidências
que não compreendo.
Um rastro de migas de pão
que sigo a cegas, como uma presa.
Há um verso a apodrecer neste poema.
Sei algo,
mas não vou dizer nada.
*
Tu em Santiago, eu em Compostela
Já não creio a minha versão da história.
Agora só nos fica esta cidade inundada,
onde desemboca o mundo.
As minhas lembranças,
amontoadas nas ruas,
que se cruzam sem fim
tecendo as nossas vidas.
E eu rendo-me.
Não há oco para mim aqui.
Deitei-me com toda a cidade
no mesmo leito.
Tentei fazer tudo bem…
E agora vomito borracho
onde nos beijamos por primeira vez.
Neste momento,
tu és a maior distância que conheço.
Vivo numa tormenta de versos
que não consigo escutar.
A mulher do alcalde,
a minha chave da cidade.
O sabor a ferro na língua,
um peso no estômago.
Uma debandada de gente rota
peregrinando ao meu peito.
O musgo
que consome as fachadas.
A barba no meu rosto.
A tua cidade e a minha, superpostas.
Não quero mentir-te mais,
estou derrotado.
Acabarei morrendo aos pés da cidade
sem que me abras as portas.
Tu em Santiago, eu em Compostela.
*
Retirada
Não vou escrever a nossa história.
Já tenho suficiente com o ensurdecedor eco de ti
como para continuar avivando o lume
com a minha carne.
Quero acordar deste sonho.
Deixar à noite devorando o céu
e o céu sangrando o meu sangue.
Esquecer tudo…
Que o tempo penetre,
frio, no meu corpo
como o vento na madeira,
limpando o pó que me inunda.
Voltar a casa. Perder-me.
– – –
Atrás, fica um rastro do que era ao teu lado,
o dente que os dois perdemos em sonhos
a noite na que nos separamos.
Um naufrágio de lume no Atlântico,
o sabor a canela dos teus lábios.
Os nossos filhos órfãos,
como os versos que esqueço.
Tu sustendo a minha identidade.
O pior é que nunca acabas de ir-te.
Agora visito-te, como às cidades.
Mas já não me atrevo
a procurar-te entre as cinzas
por medo a incendiar-me de passado.
E passam os anos, arrastando-nos,
e consumimo-nos separados.
*
O sangue
Vai-me tão bem com o piloto automático
que já acordo só de vez em quando
surpreendendo-me perdido em qualquer parte.
E inspiro forte, com a vertigem da caída,
e cada vez melhor, mas com menos tempo,
e cada vez menos eu, mais qualquer.
Então, a vida são só estes acordares
tecidos com lembranças
nas que só estou a meias?
Estava, esta manhã, a contemplar o tempo
e é claro que o mundo está a cair,
arrastando-me com ele.
Está fria esta manhã branca,
e solidifica-se a vida ao meu redor,
atando-me ao teu leito.
Continua tudo adiante, sempre adiante,
e eu fracassando no intento de curvar a vida,
o tempo, de deter-me…
O meu sangue leva muito tempo aqui, na terra.
Fala um idioma morto já, que só eu entendo.
Eu um agonizante, morto em vida.
Ao fim,
que há mais perigoso que as palavras?
Onde me conduzem?
Não tenho tempo para escutar-me,
seguirei adiante.
Até o meu último acordar.
*
Trompetas em Jericó
Estava lendo velhos sonhos
e lembrei como era antes.
Quando deixava à chuva lavar-me
e caminhava perdido em mim mesmo.
Quando vivia desperto
e o tempo não fugia de mim
como agora.
Pensava que vivera já outra vida.
Que esta era o meu paraíso.
Tinha o peito repleto de palavras
e não estes lábios secos.
Mas este mundo é uma ferida sanando.
Tentei regá-lo com os meus versos
e foi como verter água no deserto.
Assim, o meu silêncio
acabou sendo a tua sede.
E perdi algo, isso é óbvio.
Como se já não cresse
nas coisas perfeitas.
Mas não esperava isto de mim…
Abandonar-me aqui por tanto tempo.
Hoje, sinto que estou voltando,
entre lágrimas.
Sou uma rosa de Jericó.
**
Alexandre Brea Rodríguez, nascido em Santiago de Compostela no ano 1994. Graduado em física, atualmente está a realizar o doutoramento em física de partículas. Nos últimos anos participou nas obras poéticas coletivas Além do silêncio, Galiza e Moçambique numa linguagem e numa sinfonia e no Livro Homenagem a Manuel Maria, assim como em numerosos recitais. No ano 2016 resultou elegido para formar parte da antologia lusófona Emergente, que seleciona até 12 poetas emergentes de todo o universo lusófono. No 2017 publica o seu primeiro livro de poesia, O Livro Branco. Um dos poemas deste livro, Com o ritmo da chuva, resulta ganhador do prémio aRi[t]mar ao melhor poema editado em Portugal no 2017. No ano 2020 publica o projeto poético audiovisual A poesia está morta, em colaboração com Álvaro Toimil.
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