O poemário começa com aquilo que é interdito, como sendo os “mandamentos” do poeta do nosso tempo, aqueles de uma religião imposta: “nunca comerás terra / nunca beberás leite / nunca escreverás / sobre o sexo do país / nunca lamberás / as conas das poetas / nunca buscarás / as suas cuecas / entre as néscias palavras, / nunca vomitarás / no umbigo / do nosso Octavio Paz.” E isto dá pé para questionar uma consciente e necessária ação política: “quebrar para sempre as inércias do país”.
A seguir, a destruição, a decadência, a frustração se manifestam até ao ponto de amor e poema tender a desaparecer. Uma dor inevitável, essa da vida do indivíduo como a da nação, sempre semelha uma tragédia: “o meu corpo a arder sobre a terra”. Mesmo o país se tornou tão funesto que a língua houve de o abandonar: “partiu a língua, / foi a primeira a fugir”.
Até o passado que podemos lembrar, aquilo já perdido, só é uma “passagem pelas sombras”. E assim o niilismo invade definitivamente o livro: “somos poetas do nada”; “nada permanecerá no teu corpo… nada no teu país… distante e atroz o teu país”; “ não me custa não estar, / não ter terra, / não te amar”. Porque o amor se torna algo impossível numa sociedade tão doentia, em que a poesia não encontra espaço para florescer: “gritavas pedindo versos”; “não escreverás mais, / esse foi o castigo” e a verdade escasseia mesmo no íntimo do poeta: “porque nada em mim / é verdade”. Assim as cousas, é da dureza do mundo que é preciso escrever para “esquecer as vísceras, / as vísceras das crianças / sobre a areia”.
Existe, sim, erotismo neste livro, mas faz parte das diversas experiências humanas que este mundo corrompe, ultraja e contamina, não sendo mais do que parte do tecido habitualmente falso desta vida pervertida por uma razão que converte tudo em “quase-nada”, entre a frustração do que deveria ter sido e o pouco valor do que é. Um mundo que não pode evitar produzir constantes psicopatias (“sou a mão demente / a assinar o papel”), ajustes de contas, os agravos a causa da “falácia, uma lenta desforra por uma idade interminável de vergonha”, o sentimento de vulnerabilidade por “esta língua ruim e cativa / com que descrevo a miséria”. Agora, quando se revelam como protagonistas a vingança, o desterro, as ruas sem luz, os lábios que beijam a poeira das pedras, percebemos que o erotismo à la page do poemário é escasso, salvo que se poda falar de novo da erótica do poder ou, neste caso, da erótica da crítica contra o poder: “o desejo foi conceber uma erótica dos povos, / um orgasmo grupal, / uma hecatombe”, ou quando “os teus lábios lambem o universo”.
Na parte final do livro, resulta evidente a crítica do corpus literário aprovado pela intelligentsia galeguista, caracterizada por uma visão pequeno-burguesa e portanto falsamente proletária. E aqui influem, quer-me parecer, alguns dos grandes erros do nacionalismo pseudorevolucionário: a) que o nacionalismo precisa de uma burguesia galega na prática inexistente; b) que aquele modelo de revolução precisa de um proletariado igualmente inexistente, dado que uma maioria de trabalhadores rurais possuem de certo modo uma mentalidade pré-industrial, se não declaradamente feudalista.
É portanto, um livro eminentemente político. Existe nele a denúncia de um galeguismo nacionalista maioritário que se rege por esse comportamento partidário de consignas e capelinhas, e que se permite proscrever fórmulas regaleguizadoras como o reintegracionismo. Lembro neste momento as declarações do Almada Negreiros em 1968 a respeito da geração anterior à sua: “Os jovens da Orpheu fomos maltratados pela geração anterior ao Orpheu, que nem sequer nos supunha. Então, porque nos combateram?”.
O escritor Luiz Pacheco, ignorado pelas enciclopédias e desconhecido nas Faculdades de Letras (podemos acrescentar: hoje com toda a sua obra inacessível porque esgotada), é responsável pela edição da melhor poesia portuguesa, embora fosse sempre considerado um “bobo da Corte”. Para ele existiam três tipos de literatura falsa: a) a literatura “abençada”, que consiste naquelas obras dos grandes nomes que periodicamente devem vir à luz no mercado, e que respondem mais a uma “exploração do nome” ou mesmo à prostituição da escritura; b) a literatura de casino, que é “a que salva os prémios”; c) a literatura de consumo, aquela que é pensada para “ter em casa”.
Nesta linha, uma verdade que a este livro subjaz é que a literatura galega atual está alicerçada no reconhecimento a muitos autores que na realidade têm um talento essencialmente político, ou ao menos um talento para as relações públicas, factos que propiciam que tenham atingido uma projeção por cima da altura real das suas obras: “quando tudo vale, / nada tem mérito”, “quando tudo é arte, / deus dá por conclusa / a sua obra”, “porque quando tudo vale, / a única forma é não estar / guardar os cadernos, / preservar o pénis / debaixo das calças / e, silenciosamente, / desaparecer”.
E dizer isto não comporta necessariamente inveja ou um pacato desejo de não deixar medrar o fruto na leira do vizinho. É, na realidade, afirmarmos que vivemos na falsidade, dizermos mais uma vez que o rei caminha despido embora a maioria louve a vestimenta real, é reconhecer que não resolveremos os problemas do país alimentando os egos das elites.
Não se pretende, porém, desmascarar os falsos méritos literários do pessoal quanto reconhecermos que no pobre caldo da literatura atual existem restrições, censuras e intolerâncias profundamente antidemocráticas para os escritores de diversa raça gráfica, de epiderme cultural diversa à pretensamente “normalizadora”, o que faz com que dia após dia nos tornemos, absolutamente todos, menos normais.
A literatura galega reintegracionista, não só a poesia, continua, nesta cacarejada democracia, num interregno, quando não sofrendo um autêntico apartheid. Por isso é que somos descrentes deste mundo em que o mais importante semelha decidir que capelinha governará a Real Academia Galega. Depois chegam mesmo estrangeiros bem intencionados, amadores da cultura galega “autêntica” a quem devemos agradecer sua atenção embora partam suas exigências, aparentemente objetivas e científicas, de um erro insuspeitado por eles: o galego, em seu uso quotidiano e vulgar, como experiência vital comum, não é uma língua. E isto é corroborado cada dia pelo seu uso nos jornais, no mundo da empresa, na ciência e nas legislação.
Hoje, no quadro da crise económica ocidental e da crise política espanhola, as contas não dão certas para a língua do país e aquela pretensa “normalidade cultural” que devia era dar reconhecimento a uma nova e extensa vaga de vultos intelectuais e criativos revelou uma nova época em que a carência de recursos faz mais violenta a luta das capelinhas culturais perante os restos do que pode ser o definitivo naufrágio cultural. Não devemos esquecer que a nova democracia espanhola se baseia num “pacto de silêncio” a respeito dos crimes da ditadura, e é esta cultura do silêncio face à repressão que educou várias gerações e ainda contribui para que a própria democracia não floresça, e que mesmo o retorno à perda de direitos civis seja tolerada. Nesta ordem de cousas, a ocultação das obras reintegracionistas não resulta estranha no contexto dos habituais e irresolutos conflitos culturais do estado espanhol.
Ao tempo, o reintegracionismo organizado progrediu como? Embora era marginalizado por questões de forma, promoveu atitudes positivas de divulgação de conteúdos interessantes. Assumiu o paradoxo e avançou graças a ele: se os seus inimigos o castigavam a causa da forma, ele privilegiou os conteúdos. É aqui, portanto, que devemos situar a obra de Mário J. Herrero Valeiro, membro da Academia Galega da Língua Portuguesa, tradutor juramentado de português e vencedor com sua particular língua nortenha no Prémio Internacional Glória de Sant’ Ana para obras lusófonas. É nesta vontade insubmissa e abertamente galeguista em tempos de alinhamento e uniformização intelectual bizarra, que a obra do Mário Herrero ressalta, para além de na sua arte, como profundamente comprometida e contestatária.
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Notas: Este livro venceu o X Certame de Poesía Erótica Illas Sisargas em 2015. Outras referências: “da prosaica grossaria (a razão do perverso – poemas descartados), por Mário Herrero”; “Política da carne: A razão do perverso de Mário Herrero Valeiro”; “‘A razão do perverso’ é um livro formalmente erótico e também é uma crítica do sistema literário galego”.
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