Personagens
Saco de lixo 1
Senhora com cãozinho
Agente 1 / saco 2
Agente 2 / saco 3
Corredor / saco 4
Presidenta da câmara / saco 5
Capitão da polícia / saco 6
O palco é um parque convertido em depósito de lixo, com sacos de lixo espalhados pelo chão, principalmente na metade final, para o fundo. Os sacos de lixo hão de ser de preferência negros.
O palco estará quase às escuras, exceto por algum foco que ilumine, principalmente, a metade dele que cai no lado do público, enquanto que a outra metade deve estar na penumbra ou até ás escuras.
De repente, um saco de lixo ergue-se. Pode-se notar a sua forma humana, com braços e pernas. O saco do lixo aproxima-se do centro do palco e espreguiça.
SACO 1: Uahhhhh! (esticando). Que soneca tão agradável! E agora a jantar!
De repente, sentem-se uns passos. Também se ouvem uns ladridos de cão pequeno. Aparece por um lateral uma senhora a passear o seu cãozinho. O cão será falso. A senhora puxa dele para o centro do palco. O animal opõe-se ficando parado, mas a senhora conseguirá arrastá-lo. Entretanto, o saco de lixo fica imóvel, sentado, no centro do palco.
SENHORA: Pínki (ao cãozinho). Vem, doidinho, não sejas teimoso.
O cão continua a se resistir, mas a senhora consegue arrastá-lo e chegam à altura do saco de lixo que permanece imóvel. E mesmo quando o cão chega á altura do saco de lixo, este salta de repente sobre ele e devora-o dum bocado. A correia cai no chão e ouve-se um sonoro arroto.
Entretanto, a senhora ficará paralisada, presa do medo. Mas só uns segundos, a seguir, largará um alarido e correrá para o lateral pelo qual entrara, saindo do palco.
O saco, pelo seu lado, vai-se erguer tranquilamente do chão e irá reunir-se com o resto dos sacos de lixo na metade final do palco.
SACO 1: Nota-se que esse cão estava bem alimentado. Embora fosse tão pequeno, tinha muita carne.
Assim que o saco de lixo sente junto com os outros sacos, entre os quais passará desapercebido, entrará no palco novamente a senhora do cão, cheia de histeria, acompanhada por dois agentes da polícia que levam uma lanterna cada um deles.
SENHORA: Juro-lhe, agente, que um desses sacos se lançou sobre o meu Pínki e comeu-o de um bocado, sem mastigar nem nada (diz enquanto acena para o centro do palco, onde já quase chegaram, mas ali não há nada).
AGENTE 1: Vamos ver, senhora, e não será que o seu Pínki, que deve ser brincalhão como todos os cães, não se meteria ele sozinho num saco para brincar ou procurar comida e agora não pode sair?
SENHORA: Não, agente, não…
Ambos os agentes e a senhora já estão no centro do palco. Nesse momento, o segundo agente alumia com a sua lanterna para o chão e encontra a correia do Pínki ali deitada.
AGENTE 2: Suspeitoso, muito suspeitoso (diz enquanto mostra a correia do cão ao seu companheiro).
AGENTE 1: Tu vês muitos filmes, não vês?
Nesse momento chega um homem a correr, em fato de treino.
CORREDOR: Deixem passar, por favor.
Tenta evitar os polícias e a senhora. Para isso desloca-se para os sacos do lixo. Grita. Cai, perde-se entre os sacos. Um deles acaba de o engolir.
AGENTE 1: Está bom? Lastimou-se? (ao corredor).
Ouve-se de novo um arroto. Do corredor não há rasto nenhum, porque caiu entre os sacos de lixo, mas foi engolido por um deles.
AGENTE 1: (ao agente 2). Vai olhar e dá-lhe uma ajudinha a esse senhor, se calhar até se magoou.
AGENTE 2: Não, eu vou pedir reforços. Isto é um ataque de zumbis (O agente 2 tira o seu transmissor e começa a pedir ajuda). A todas as unidades, temos um 4-3-4, ou se calhar é um 8-0-3… Bem, não sei, a questão é que necessitamos de reforços. Repito, necessitamos de reforços.
AGENTE 1: Não sejas paranoico.
O agente 1 mete-se entre os sacos.
AGENTE 1: Senhor, está bom? Escuta-me? Senhor?
Ouve-se um novo arroto. O agente 1 desaparece. É engolido por um saco de lixo, daí o arroto.
Ao agente 2 cai-lhe o transmissor para o chão. Pega na pistola. Treme como um pudim.
AGENTE 2: Sacos de lixo, estão arrestados. Têm direito para guardar silêncio. Têm direito a um advogado. Se não puderem pagá-lo, terão um advogado oficioso…
Enquanto vai dizendo tudo isto, com a pistola fora do coldre, o agente mete-se também entre os sacos de lixo. Logo desaparece da vista. Ouve-se um novo arroto. Também ele é engolido.
Três sacos erguem-se.
SACO 1: Veem como eu tinha razão? Aqui há jantar para todos.
SACO 2/AGENTE 1: Certo, mas este polícia tinha o colesterol um bocadinho alto.
SACO 3/CORREDOR: Pelo contrário, o meu era todo fibra. Não gosto de comer desportistas, deixam-me faminto…
SACO 1: Está bem, não se queixem, que eu só comi um cão miudinho.
SACO 4/AGENTE 2: A mim este polícia provoca-me gases… (e larga um arroto).
Entretanto, a dona do cão foi testemunha muda da conversa entre os sacos de lixo. Mas nesse instante reage e fala com o saco 1. Começa a bater nele com o seu bolso.
SENHORA: Devolve-me o meu Pínki, devolve-me…
SACO 1: Senhora, comporte-se, por favor.
A senhora ainda bate no saco duas vezes mais com o seu bolso. Mesmo então chega a presidenta da câmara com o capitão da polícia.
CAPITÃO: Tudo bem, senhora?
SENHORA: Sim, mas quero que este lixo me devolva o meu Pínki.
SACO 1: Guau, guau.
SENHORA: Pínki!
O capitão aproxima-se com cautela, esquivando os sacos de lixo; pega na mão dela e atira dela até a retirar da zona dos sacos e a colocar ao lado da presidenta da câmara.
PRESIDENTA DA CÂMARA (ao saco 1): Que reivindicações têm?
SACO 1: Só queremos comer.
PRESIDENTA DA CÂMARA: Desde quando os sacos de lixo se alimentam?
SACO 1: Desde que vocês, os humanos nos criaram. Não estão cientes de tudo o que atiram para o lixo. Toneladas e toneladas de desperdícios em depósitos de lixo. Aí vocês deixam lá tudo e, se calhar, o enterram, para que não se veja. Portanto, saibam que depois de tanto tempo a se desfazerem dos vossos desperdícios, nós cobramos vida. Vocês criaram-nos…
PRESIDENTA DA CÂMARA: Isso é impossível. Nós não fizemos tais coisas. Somos os amos do planeta.
SACO 1: Isso é o que vocês creem.
PRESIDENTA DA CÂMARA: Aliás, como fedem vocês. É que ninguém vos explicou o que é um duche?
SACO 1: Senhora, somos mesmo lixo.
Nesse momento, todo o palco fica às escuras. Não se vê nada. Apenas se ouvem três arrotos consecutivos. Os três personagens são engolidos por três sacos vazios. Prosseguirá a escuridão.
SACO 2/AGENTE 1: Bom proveito.
SACO 1: Obrigado.
SACO 5/PRESIDENTA DA CÂMARA: Obrigada.
SACO 6/CAPITÃO: Obrigado.
Regressa a luz. Os seis sacos são de novo os seis personagens que foram previamente engolidos, ainda que a vestirem um saco plástico por cima das suas roupas (deixarão sair a cabeça, os braços e as pernas. O saco 1 é agora a senhora do cãozinho, mas esta caminha sobre quatro patas e ladra).
AGENTE 1: Já está. Agora o planeta é nosso.
PRESIDENTA DA CÂMARA: E eu vou ordenar, que é do que mais gosto.
AGENTE 2: Ah, não, que eu sempre quis ordenar também. Deixa-me a mim, deixa-me a mim.
PRESIDENTA DA CÂMARA: Não repliques.
CORREDOR: Parecem humanos.
SENHORA (fala meio ladrando): Tens razão, arf, arf, tens razão… Auuu (uivando).
CAPITÃO: Não discutam. O importante é que o lográmos. Como sabia eu que aquele velho ditame humano era totalmente certo.
TODOS JUNTOS: Que ditame?
CAPITÃO: Aquele que diz: “Somos o que comemos”. Portanto, se os humanos comem lixo, são lixo; mas, se nós comemos humanos, somos… (para o público)
PRESIDENTA DA CÂMARA (para o público, avançando até à beira do palco): Por favor, não nos confundam com os zumbis. Nós cheiramos muito pior do que eles.
FIM
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