Xavier Alcalá reeditará o seu polémico romance Tertúlia numa versão atualizada. Será publicado em simultâneo e por encomenda em Praza Pública e Palavra comum cada semana a partir do mês de fevereiro, em data ainda sem concretizar.
Alcalá é hoje um autor consagrado que conta com uma listagem muito ampla de prémios e obras relevantes, entre as quais figuram autênticos long sellers como A nosa cinza, para muitos uma das bíblias escolares na hora da primeira comunhão literária em galego, junto com as cantigas medievais galaico-portuguesas e obras do teor d’ A esmorga, Os vellos non deben de namorarse, Memorias dun neno labrego, O porco de pé ou Arredor de si. Mas este profissional das telecomunicações e da gestão de recursos europeus desde há tempo com barbas brancas, autor buliçoso de artigos de opinião e ao tempo virtuoso narrador de romance histórico tem um passado brincalhão fruto de seu compromisso sincero com a liberdade criativa. E Tertúlia foi o epicentro de uma sua burlesca crítica a um sistema literário galego nascente, sendo por isso o alvo do furacão que as “vacas sagradas” que el criticava na obra mandaram, como deusinhos furiosos contra as pretensões libertárias do escritor, para que a obra não pudesse vencer o Prémio Blanco Amor, quase uma certeza para os intervenientes.
Efetivamente todo aconteceu assim, como se chegou a saber por pessoas mais ou menos discretas e por alguma que sem qualquer recato difundiu as ações mais vergonhosas, para a sua indignidade. Esse foi o caso de Marino Dónega, membro da Real Academia Galega e Conselheiro da cultura no período pré-autonómico, que se sentiu especialmente ofendido pela obra devido à crítica institucional que continha, e que não parou até sachar os três votos que precisava para vencer os dois sólidos votos a favor dos jurados restantes. Mas a coisa não havia de finalizar aí: quando mesmo os responsáveis dos suplementos literários já estavam a redigir que vencia o seguinte grande prémio do ano, o Edicións Xerais, de novo no último momento ficou apartado. E quando a seguir o romance era publicado por Sotelo Blanco, o editor passa a ser secreta e rijamente advertido de que qualquer reedição posterior poderia implicar a seca das subvenções habituais.
A obra, como em poucas semanas terá o público novo a oportunidade de comprovar, introduz temas de interesse perene, quer o queiramos quer não, ainda que não todos os aspetos se poderão valorizar de idêntico modo hoje que numa época que ainda arrastava os modos da ditadura como palhas coladas ao cu. Ou sim? A ver vamos: a gerontocracia dos agentes culturais institucionais; as capelinhas e cadeias de favores entre próceres e recomendados do sistema literário; a assumida espanholidade e a pobreza intelectual de muitos vultos da cultura; uma reflexão sobre o plágio ou a ética do escritor; a justiça dos prémios literários; a questão ortográfica do galego, pois o autor usa quatro diversos modos de grafar; a questão da tradição literária ideal, espanhola ou lusófona. E isto sem contar que muitas das personagens, algumas baseadas em famosos factótums da cultura, serão facilmente reconhecíveis pelas suas funções no sistema, outras conhecidas por um nome similar ao real e algumas provavelmente ficarão ocultas para a maioria numa primeira vista de olhos, até porque se trata de misturas de atitudes ou de pessoas reais da altura.
O próprio Alcalá levava desde 70 tomando notas sobre a vida cultural galega, e ainda quis aclarar que nunca pretendeu usá-las para escarnecer ninguém, senão que a sua vontade foi apoiar-se na realidade para criar um relato burlesco que visasse o gozo literário e captasse o leitor mediante uma atrevida combinação do sério e do humorístico. Mas o poder, esse poderzinho que podia pressionar para que uma obra incômoda ficasse na berma, detida propositadamente na autoestrada que um prémio prestigioso supõe, atuou como de todo autoritarismo se espera: usou suas influências políticas e as razões extraliterárias lograram empecer uma obra singular. Porque o poder não tem sentido do humor quando a sua autoridade resulta questionada, como se na sua simpleza tivesse presente, como Sócrates e os bufões de toda época arguiam, que são as coisas realmente sérias as que devem ser tomadas com humor, já que carecemos da profunda seriedade que a sua natureza na verdade impõe.
Mas como uma verdadeira atitude de out-sider nunca de todo se perde, agora Alcalá está bem disposto a publicar uma nova versão com o título de Tertúlia revisitada. O plano de publicação inclui oferecer para a consulta toda a bateria de documentos da sua controversa polémica, a disposição do autor para tratar estes temas e outros que forem pertinentes e a publicação de um questionário enviado a um grupo heterogéneo de pessoas, tudo antes da publicação da obra em entregas semanais.
Se bem a obra literária de Xavier Alcalá por regra pode achar-se em galego na Editorial Galaxia, uma parte crescente da obra traduzida ao castelhano está já a ser divulgada em formato digital nas mais conhecidas plataformas de venda desde um blogue específico.
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