A fotografia que acompanha este poema é do próprio autor, Nuno Mangas Viegas, e foi publicada na sua página em facebook, O Pára.quedas de Ícaro.
Descendo os cristais geométricos
sobre o prato, ela voava
(voa e as suas asas são vivas
têm coração, veias, sal.
É um animal belo: uma cadência impossível)
Há na memória um candeeiro a petróleo
iluminando as pernas, as mãos:
as secções íntimas do movimento.
E ela passava, roçando com as asas
nesta língua
(É fria como uma aranha bela, viva
sobre a mão)
Há instantes que demoram séculos a concluir-se
cá dentro…
lembro aquela noite, aquela noite em mim.
A mão estava quente e nada ardia em redor.
Havia um candeeiro a petróleo na memória
iluminando as coisas que passam rápidas e frias
como aranhas prenhas, com muita vida por dentro.
O som de coisas duras caindo no metal:
caíam cristais, caíam, batendo, assustando
o coração geométrico que têm dentro.
Caíam sobre o prato com fome,
e ela voava e roçava com as asas extremas
nestes olhos. Redimia.
A sua beleza obrigava ao choro, à comoção:
talvez um milagre, uma aparição particular
– era novo: não poderia saber se era o início ou o fim –
As asas vivas, pulsando, vivas
salgadas,
descendo aquela noite demorada,
regando de milagres aquela casa,
aquele fogo muito rápido. Por dentro,
iluminando-se subitamente na luz
velha da memória.
(o medo é uma arte incompleta, indecisa)
Não era um pássaro
nem dos seus olhos ardiam nomes,
não era insecto nem mamífero
mas voava e largava cristais
sobre os objectos, dava-lhes coração…
Era bela.
Depois: a cabeça esquecia o candeeiro
o som dos cristais caindo, cessava
e algo morria lá fora:
asas morrendo o seu milagre à chuva.
Por dentro, onde a loucura jovem guarda os medos,
os cristais batiam… batiam
as suas asas por dentro do coração deixado.
Era bela. Voava.
– sem nomes entre as asas –
(Nuno Mangas-Viegas, Tavira, 2014)
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