Desde o seu primeiro romance em 2008, A Carne de Deus, nunca mais parou, com uma, duas, três e até quatro ou mais obras por ano. E se juntamos outros livros com colaborações, volumes de ilustrações, participação na imprensa diária ou periódica (crónica mensal “Paralaxe” no Jornal de Letras), estaremos facilmente diante do criador mais impaciente, multifacetado e ativo da cena lusitana.
Afonso Cruz (Figueira da Foz, 1971) formou-se entre Lisboa e a Madeira em Belas Artes e Artes Plásticas. Da sua escrita persistente, e de entre um já amplo elenco de títulos, talvez fossem ficando mais salientes aqueles que receberam algum dos vários prémios que possui: Enciclopédia da Estória Universal (2009), Prémio de Conto Camilo Castelo Branco; Os Livros Que Devoraram o Meu Pai (2010), Prémio Maria Rosa Colaço; A Boneca de Kokoschka (2012), União Europeia de Literatura; Jesus Cristo Bebia Cerveja (2012), Time Out – Livro do Ano e Melhor Livro dos leitores do Público; Para onde Vão os Guarda-chuvas (2013), Melhor Livro de ficção da SPA; ou Flores (2015), que acaba de receber precisamente o Fernando Namora. A escolha será para gostos e com transbordamento pois há tanto citável como para preencher a revista. E se não cabe a variedade e quantidade da produção também resulta difícil pintar em pouco espaço uma personalidade artística poliédrica, que veio do visual para o verbal, passando pelo musical (ilustrador, realizador de filmes de autor ou de publicidade, músico na banda de blues The Soaked Lamb), para afiançar-se como um dos escritores mais interessantes do Portugal do presente.
* * *
Carlos Quiroga: Quem tem mais culpa, a biblioteca do teu pai ou a formação dele em fotografia, seguindo o rumo do avô fotógrafo da Figueira, ou mesmo este, em que creio está baseado O Pintor debaixo do Lava-Loiças? Como se faz um escritor de perfil tão rico como o teu?
Afonso Cruz: Não sei, nunca pensei em ser um escritor. A família do meu pai foi uma grande influência. O sótão da casa dos meus avós era um espaço mágico na minha infância, um lugar temível que eu não arriscava a frequentar à noite, mas que durante o dia me presenteava com tantas coisas que é difícil enumerar: brinquedos velhos, carros de lata, vestidos de outras épocas, quadros, material de fotografia, telefones velhos, material de guerra (balas, espingardas, pistolas de alarme, machados, bombas desactivadas, peças de aviões), revistas, livros, lanças indígenas, presas de animais. E todas estas coisas tinham histórias associadas, lendas familiares, algumas que ainda hoje tenho dificuldade em acreditar. Vivi e convivi com livros, fotografias, arte. Isso ajuda. Sei que não é tudo, mas ajuda. Com os meus filhos tento, o mais possível, que tenham acesso a várias coisas. Não imponho, mas sei que é importante que tenham acessibilidade. É também isso que imagino numa escala maior: um país sem imposições e compulsões, onde exista total acessibilidade à cultura.
C. Q: Lembro-me de uma noitada na Póvoa a explicares meticuloso o fabrico de cerveja: essa curiosidade pelo que gostas alimenta a escrita ou é a escrita que satisfaz curiosidades? Recolhes antes o dado ou apetrechas-te no processo de elaboração?
A. C: Tento sempre, por feitio, perceber como se faz aquilo que me rodeia. Se bebo cerveja, quero saber como se faz. Se gosto de queijo, quero saber como se faz. Se gosto de ler quero saber como se escreve. Mas a cerveja teve um ingrediente extra. Li num tratado de espagíria do século XVI, que o seu fabrico era uma escola de filosofia, que pela interpretação alegórica da produção de cerveja se poderia compreender o universo. Fiquei muito curioso com essa possibilidade, comprei material e comecei a fazer cerveja em casa, num apartamento. Lavava as garrafas na banheira e deixava o fermentador na casa de banho. Fui percebendo o que o monge do tal tratado de espagíria queria dizer. Não sei se compreendi o universo a fazer cerveja, mas percebo as alegorias que podemos encontrar no caminho. De resto, acreditarei sempre mais noutra possibilidade: não é a fazer a cerveja que se compreende o universo, mas a bebê-la.
C. Q: Parecia que certa vontade psicadélica que arranca com a ponta de sarcasmo do teu primeiro romance, e talvez passa pelo Jesus Cristo, ia ser marca da casa, mas o carimbo alarga matizes. Achas ter alcançado a tua voz, estar no registo maduro?
A. C: Não acho que exista uma meta. É como o horizonte. Vamos caminhando e ele está sempre à mesma distância. Faço por tentar explorar novas vozes e, na verdade, procuro, não a maturidade, mas a infância, uma maneira prístina de olhar o mundo. Não me forço por aprimorar um estilo e segui-lo e torná-lo perfeito. Seria um caminho legítimo, mas não teria a ver comigo, prefiro arriscar, experimentar. Tento fazer isso na ilustração também.
C. Q: Já te ouvi ou li que a matéria-prima da arte são coisas que não existem, mas de repente chegas com Flores e marcas cáustico o presente e a conjuntura política. Para um enciclopedista de factos inventados, que peso tem a crítica ao real (ou reais), é incontornável, prescindível, melhor oblíqua para perdurável…?
A. C: Sim, a ficção, a criatividade é o trabalho da inexistência, moldar o que não existe, mas que pode vir a ser. Uma mesa não existia, foi preciso imaginá-la. Quase tudo o que nos rodeia, na nossa sociedade, são objectos que nasceram da imaginação, da criatividade. Não existiam. A cultura é isso mesmo. A propagação e solidificação das ideias, o percurso da inexistência até à existência e da sua preservação. Colocam-se hipóteses, novas maneiras de olhar. O facto de me concentrar na realidade em romances como o Flores não muda nada em relação a isso. Aliás, a criatividade, o inusitado, o inacreditável está tão presente no nosso quotidiano como em histórias de fadas. Uma das coisas mais importantes para mim é precisamente encontrar o lado, o ângulo insólito da banalidade. Confundimos muito o que é comum com o que é trivial ou desinteressante. Costumo dar o exemplo de um nascimento de uma pessoa: acontece a todo o instante, é perfeitamente comum, mas não é banal. Cada nascimento, se olhado com perspectiva tem uma magia absoluta, que não é sequer possível quantificar. No fundo, basta olhar para as coisas um pouco ao lado do que é costume e temos e vemos uma espécie de epifania.
C. Q: O músico de A Boneca de Kokoschka, o senhor Ulme de Flores: a perda da memória, de diferentes perspectivas, é tema especialmente perturbador?
A. C: Sim, eu diria que é a coisa mais perturbadora da existência. A memória tem uma relação muito forte com a identidade que, por sua vez, é essencial para compreender a nossa vida e dar-lhe sentido. A imortalidade, por exemplo, depende da identidade. Sem precisar uma identidade, o que sobrevive? É um assunto que abrange a religião, a filosofia, a metafísica. E, claro, é um tema fundador, seja de pessoas, seja de nações, seja de culturas. A memória enquanto percepção de algo é a única garantia da sua preservação e continuidade. Nada existe sem a percepção e a corroboração e uma posterior solidificação, que, mal ou bem, são os mecanismos da memória.
C. Q: Variedade estrutural, temática, vontade de mudar e surpreender com cada livro, mas quanto ao ponto de vista narrador creio que só agora usas a primeira pessoa.
A. C: Flores foi o primeiro romance que escrevi na primeira pessoa, mas não foi a minha primeira experiência nesse sentido, já que as novelas Os Livros Que Devoraram o Meu Pai e Vamos Comprar Um Poeta, bem como alguns contos e livros para a infância, foram escritos na primeira pessoa. De facto, gosto disso, da intimidade que se cria e da possibilidade de criar vozes muito próprias. O que me acontece é que, nos romances, que têm um fôlego diferente, são narrativas mais extensas, por vezes sinto alguma limitação e a falta de uma perspectiva exterior. Mas sim, tento, como referi antes, encontrar novos caminhos narrativos.
C Q: Dezenas de países visitados, da Bolívia à Síria, do Brasil ao Gana, do Benim à Índia… Acabou o tempo das viagens compulsivas por puro prazer? Volta ao mundo agora só por dever?
A. C: Por vezes viajo por dever, mas isso não quer dizer que anule o prazer. Não viajo da mesma maneira que viajava, é um facto, mas vou encontrando o que é na verdade mais importante, pelo menos para mim, e que é omnipresente: o factor humano. As paisagens e os monumentos podemos vê-los em postais, mas a bonomia de uma pessoa tem de ser experimentada. O que não é possível ver de uma pessoa numa fotografia é imenso. Um vitral, concedo, tem um impacto diferente quando o vemos numa catedral de quando o vemos num livro de arte, mas não se compara a uma pessoa. A riqueza interior, aquilo que não aparece nas fotografias é incomparavelmente maior à dos objectos. Nenhuma praia poderá dar-nos a felicidade, a tristeza e a profundidade que uma pessoa, por melhor ou pior que seja, nos concede ao cruzar-se connosco.
C. Q: E no meio desse multipaisismo foges da Almirante Reis de Lisboa para o campo alentejano: qualidade de vida, orçamento, espaço de trabalho?
A. C: A resposta é singela: sempre acreditei que seria feliz no campo. É verdade que tenho mais qualidade de vida, mais espaço de trabalho, mas isso não quer dizer nada. É preciso gostar do campo, e o campo não tem nada a ver com aquilo que achamos que é o campo quando vivemos numa cidade. Algumas pessoas dão-se mal, outras gostam muito. Eu, até agora, sou das que gostam muito.
C. Q: O teu primeiro emprego foi na área da animação e o mundo parece que demanda cada vez mais volume de produção nessa vertente. Não encaras um retorno a sério, ou toda a carne vai estar cada vez mais na escrita?
A. C: A animação é uma arte muito especial. Sinto um enorme privilégio no facto de ter começado a trabalhar nessa área. É uma arte total. Não lhe dão o seu verdadeiro valor, mas a animação contém, em si, todas as outras artes: pode ter música, pintura, escultura, desenho, dança, teatro, literatura, fotografia, etc. Se pensarmos num suporte para incluir tudo isto ao mesmo tempo, acho que só a animação é capaz de o fazer.
C. Q: Porquê é normalmente um trabalho de equipa, ao mudar-me para o campo, senti que seria difícil ou impossível manter-me a trabalhar nessa área.
A. C: A escrita tem absorvido cada vez mais o meu tempo. Por vários motivos, mas um deles é evidente, pelo menos para mim: demoro mais a escrever um romance do que a ilustrar um livro ou a compor uma dezena de musicas para um disco.
C Q: Por outro lado, com a banda de blues compões, cantas, tocas vários instrumentos: é um divertimento ou pode vir a ser uma via criativa mais substancial?
A. C: Gosto muito de tocar, gosto muito da música, mas sinto-me mais confortável com as palavras. Sei que seria mais feliz ao contrário, porque a música tem essa faculdade de nos fazer dançar, mas os meus pais presentearam-me com um feitio meditabundo que me fez relegar a música para segundo plano. Em vez de bailar, encurvo-me em frente a teclados de plástico e debruço-me sobre livros com uma dedicação que não consigo dar à música e à catarse.
C. Q: Escreves ainda por paixão ou vais estando mais atado por prazos, eventos, ilustrações que entregar, crónicas, entrando num esquema cada vez mais profissional?
A.C: Gosto muito de escrever. Quando deixar de ter prazer em fazê-lo, se isso um dia acontecer, mudo de actividade. Mas serei sempre amador. Aquele que faz por amor, ou paixão. A profissão é o que mata o sentido. Chesterton dizia, e eu cito-o muitas vezes, que ao amor, quando se profissionaliza chama-se prostituição. As coisas que realmente importam na vida, fazemo-las sem esperar benefícios ulteriores e não são profissionalizáveis, como a amizade e até a própria leitura. O Pennac dizia que a leitura, tal como o amor, não aceita imperativo. Não podemos exigir que uma pessoa adore figos ou que ame o seu vizinho de cima. As coisas que realmente importam dão-se melhor com a liberdade e com o facto de terem um fim, um propósito, em si mesmas, e não sejam ferramentas ou utensílios para outras coisas.
Tenho encontrado na escrita dos meus livros um espaço de total liberdade. O resto, as viagens, os eventos, poderia abdicar deles, mas para ser franco gosto desse lado, da partilha. Não sou particularmente social, mas também não sou um misantropo, gosto de perceber o que escrevo através de quem me lê, gosto de discutir, de conversar e de beber cerveja.
C. Q: Entre as mil coisas que ficam, a curiosidade ainda geográfica: o teu andarilhar planetário já te levou pela Galiza?
A. C: Sim, adoro. É uma daquelas geografias onde facilmente me imagino a viver. Talvez um dia me mude.
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Notas: Fotografias de Carlos Quiroga. Esta entrevista foi publicada no número 83 da revista de Biblos Clube de Lectores.
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