O Ondra atravessou o Moldava pela ponte de Mánesův, sem rumo fixo, apenas a caminho de Malá Strana. Na mão levava a pasta que continha todas as suas possessões, papeis e documentos que provavelmente só tinham valor para ele. Acabava de assinar o acordo de divórcio com aquela sua ex-mulher, aquele ser horrível com que tinha partilhado os últimos quinze anos da sua vida, tratando-o como se fosse uma merda, a pior merda, que agora ficava com todas as poupanças, com o apartamento e com o cuidado dos filhos. Ele ainda poderia levar os quatro pares de calças e camisas, teria que voltar a viver em casa dos seus anciãos pais depois de tantos anos, porque nem para um aluguer tinha. Puta miséria, puto sistema judiciário, puta ex-mulher que o tinha fodido tantos e tantos anos, e com o divórcio ainda mais.
Com todos aqueles pensamentos foi-se introduzindo por Klarov, depois por Pod Bruskou e finalmente por Chotkova, seguindo o percurso do elétrico, sem pressas, sempre a olhar para o chão. Mal alçou a vista para atravessar a rua sem notar sequer que um elétrico lhe roçava a jaqueta. Acabou em Hradčanská depois de ter passado por diante da embaixada de Israel, cujo vigilante olhou para ele como se se tratasse de um desesperado com vontade de se suicidar, que possivelmente levava explosivos na pasta miserável que carregava na mão, mas como prosseguiu a sua caminhada, não o deteve. A seguir passou por diante da embaixada da Espanha, mas ali ninguém vigiava, ninguém o ia reter. Atravessou finalmente M. Horakové e desceu para Dejvická, sempre por acaso, sem rumo fixo, sempre a mascar naqueles pensamentos fixos, obsessivos, depressivos, desesperantes.
Retomou a consciência quando aquele cheiro chegou até ao seu nariz. Era cheiro a papel. Era cheiro a livros velhos. Tinha-se deixado arrastrar por aquel aroma pela rua Jaselská. Se não fosse tido por aquele cheiro, o Ondra provavelmente teria continuado a caminhar pelos onze quilómetros de Evropská até sair de Praga e caminhar, caminhar, caminhar, sem qualquer direção. Porém, aquele cheiro havia mais de quinze anos que não lhe chegava. Era um faro agradável, um faro que não voltara a notar desde a sua época de estudante universitário, antes de a sua vida mudar completamente graças à sua namorada daquela altura e depois esposa, da qual acabava de se divorciar mal havia duas horas.
Tratava-se de um alfarrábio. A montra era uma acumulação de livros. A parede externa servia para segurar várias colunas de livros que todos os dias eram colocados ali cuidadosamente à hora da abertura, mas que eram amorosamente recolhidos ao serão, sem que a física fosse capaz de fornecer uma explicação de por que o local não explodia quando vários centos de livros mais eram introduzidos nele depois de fechar, bem como também não explicava a física que o número de livros se incrementasse todos os dias sem a loja perder os corredores entre livros. Isso é algo que só um alfarrabista poderia explicar, como também só um alfarrabista podia explicar a ordem no caos.
Embora tivesse ficado quase com o posto, o Ondra quis recuperar a sua mocidade. Entrou no alfarrábio. Como cabia esperar, as prateleiras mal continham aquelas massas de livros, alguns dos quais já nem eram propriamente livros, mas maços de papel onde as folhas se mantinham ainda juntas por alguma razão inexplicável.
O interior estava escuro, a luz dificilmente conseguia penetrar desde a rua. Não havia barulho, só um faro intenso a papel velho, mas aquela sensação era muito agradável para o Ondra. Pensou que não se importaria morar num lugar como aquele. Contudo, nalgum ponto remoto da loja, sentia um barulho muito ligeiro, como de alguém que organiza papeis e tira e mete folhas numa pasta, acompanhado dalgum pigarro suave. Era provavelmente o alfarrabista.
O homem apalpou o bolso. Mal tinha umas moedas, se calhar nem chegava a duzentas coroas, porque nem tinha uma nota. Era um dilema complicado, teria que escolher entre jantar algo naquela noite ou comprar algum livro de lá, que decerto encontraria algo interessante, livros por 15 ou 20 coroas. Afinal pensou que, depois de tanto sofrimento, bem podia ficar sem alimentar o corpo, mas podia alimentar o espírito com livros, livros daqueles que à sua ex-mulher causavam horror, razão pela qual tinha deixado todos os seus livros em casa de seus pais. Aliás, olhando para trás, havia mais de dez anos que não comprava livros, livros daqueles que ele gostava, e menos ainda que comprasse livros de alfarrábio, pois esse tipo de livrarias, com o cheiro a velho, causava horror à sua ex-mulher.
Afundiu na seção de astronomia, a sua favorita. Ficou em pé a folhear livros, alçando-os para que lhes chegasse um mínimo de luz. Apanhava um de aqui, outro de lá, outro de acolá; segurava cinco livros em cada mão, todos abertos por uma página, confrontava informações. Estava particularmente interessado nas harpias, embora ele não soubesse decerto porquê.
E então, de repente, sentiu um barulho imenso, um estrondo que até fez com que tremesse o chão. E a seguir, escuridão absoluta.
Acabavam de baixar a porta metálica em rolo e ficara na escuridão mais absoluta. O dono da livraria nem chegara a se inteirar da sua presença lá, provavelmente achou que tinha o local vazio.
O Ondra conservava por sorte um velho telemóvel sem qualquer subtileza de aplicações, servia apenas para ligar e receber telefonemas, mas emitia um feixe fraco de luz. Era um velho modelo de concha, que acabou abrindo para se iluminar. Porém, a diferença entre aquele feixe mínimo de luz e a escuridão total seria praticamente nula dentro daquele labirinto entre papel. Contudo, o cheiro a papel de livro velho transmitia uma grande calma ao Ondra que o mantinha sossegado. Se calhar, pensou, até poderia ficar a viver lá dentro.
Mecanicamente continuou a caminhar por aquele labirinto. Optou por fechar o telefone, se por acaso noutra altura precisava daquele minúsculo foco de luz. Às apalpadelas caminhou devagar tocando os livros com a mão esquerda, enquanto na direita segurava a sua pasta. Guiava-se pelos cheiros, porque nem todos os livros cheiravam iguais. Houve um que o atraiu de uma forma especial. Prosseguiu o caminho, trás o rasto daquele cheiro, corredor a corredor. Por vezes até tinha a sensação que algum livro ia lançar-se em cima dele e falar-lhe. Não podia negar que sentia certo temor, mas também é certo que se sentia imune a qualquer sensação desagradável depois de ter brigado com a sua ex-esposa no tribunal umas horas antes.
Foi assim que, caminhando e caminhando, alcançou um ponto onde se notava certa claridade. A luz e o cheiro aumentavam. O Ondra achegou-se até lá. Apareceu numa sala que se abria ao final do corredor de livros. Não se viam as paredes da sala, porque também estavam cobertos de livros, mas pelo menos lá havia prateleiras. Atravessou a sala. Havia umas escadas. Desceu. Caminho ainda entre livros sem ver o que havia nos laterais. Ao fundo estava a montra e… a porta da rua.
Saiu. A luz das oito da tarde cegou-o. Durante uns segundos teve que adaptar os seus olhos àquela claridade. Depois, virou-se e olhou para o local de que acabava de sair. A rua de paralelepípedos, a arquitetura, tudo fazia entender que não estava em Praga. Desconhecia o lugar.
Entrou novamente na livraria. Achegou-se da mesa onde sentava o proprietário do local. Falou-lhe em checo.
– Dobrý den. Kde jsem?
O homem olhou para ele. Era evidente que não percebia aquela língua. O alfarrabista sorriu e falou em inglês:
– May I help you?
O Ondra sim falava essa língua.
– Please, where am I?
– Do you want to know where you are? In Coimbra, Portugal.
Coimbra, Portugal? Era impossível.
– How come?
Aquela pergunta ficou no ar. O alfarrabista disse apenas:
– You are in my second-hand bookshop. My name is Miguel Carvalho. This place is in the Adro de Baixo.
O Ondra não podia acreditar. Porém, a sua intenção era voltar para a sala em que tinha aparecido. Visto que tinha chegado por lá, teria que voltar também por lá, se é que aquilo tinha qualquer lógica. Já ia virar-se, quando a sua pasta bateu contra um canto da mesa do Miguel Carvalho e caiu para o chão. Ficaram à vista fotos da sua ex-mulher, junto com algumas notas suas escritas à mão. O Miguel ergueu-se da sua cadeira para ajudar o Ondra a recolher os seus papeis. E justo então ficou a observar uma das fotos da ex-mulher com atenção:
– So, you’re interested in mythology. How interesting. This harpy seems so real…
Harpia? Dissera que a sua ex-mulher parecia uma harpia real? Aquele alfarrabista nem podia imaginar.
– Keep the photo for yourself. I’ll even give you some more, all my photos of this harpy. Here you are –disse o Ondra.
– Thanks a lot. They’re so good, even high quality. Guess what? I also sell old photos. These ones aren’t actually old, but they fit in my collection of mythology topics. Please, let me pay you for them. Four euros.
Nesse momento, ligaram para a loja e o alfarrabista atendeu o telefonema. Aproveitando a distração, o Ondra encaminhou-se para as escadas e ascendeu para a sala de cima. Alcançou a sala porque tinha entrado e introduziu-se por um corredor qualquer entre livros, sem ter mesmo certeza que fosse aquele por que tinha vindo.
Bem logo, ficou em escuridão absoluta, no meio de nenhuma parte. Adormeceu deitado no chão, sobre uma poeira espessa que o isolava do frio.
Acordou quando abriram a livraria na manhã seguinte. A porta de ferro rugiu ao ser aberta. Esperou até que o alfarrabista entrou e se entreteve com algo dentro da livraria. Aí aproveitou o Ondra para sair pela porta e voltar à rua.
E sim, estava em Praga, outra vez na rua Jaselská. Aquela experiência ninguém a acreditaria. Seria estúpido contar que tinha entrado num alfarrábio de Praga e passado para um alfarrábio de Coimbra, mas felizmente tinha regressado, porque, se calhar, poderia ter acabado em, quem sabe, Istambul.
Devagar, começou a caminhar para Malá Strana. Apenas tinha um lugar onde ficar: em casa dos seus pais.
Três dias mais tarde, recebeu um pacote na casa dos pais. Era a sua pasta, que a tinha esquecido no alfarrábio da rua Jaselská, junto com uma nota de cem coroas. Quando acordou, a pasta ficara lá e ele saíra sem ela. Agora, o alfarrabista devolvia-lhe a pasta com uma nota.
Prezado senhor:
Encontrei esta pasta no chão do meu alfarrábio. Felizmente o seu endereço estava dentro e assim posso devolver-lhe este objeto, que tem de ser muito importante para si. Aliás, permito-me incluir as cem coroas que lhe ofereci pelas fotos da harpia.
Cordialmente
Michal Dub
As fotos da harpia? O cérebro do Ondra começou a reagir depois de vários dias de inatividade. 100 coroas equivaliam mais ou menos a 4 euros, que era o preço que o alfarrabista português lhe tinha oferecido pelas fotos da sua ex-mulher. O alfarrabista de Praga, que nem sequer conseguira ver na livraria, pagava-lhe por aquelas fotos. Além disso, o português chamava-se Miguel e o checo Michal. Não podia ser por acaso.
O Ondra foi consultar o velho dicionário de português-checo que o seu pai tinha em casa. Procurou a palavra carvalho. Com efeito, as suas suspeitas eram certas. O carvalho português era o dub, checo, portanto, Michal Dub e Miguel Carvalho eram o mesmo nome.
Com um sorriso nos lábios, o Ondra pôs o casaco e os sapatos, e saiu para a rua, mas antes gritou para a mãe:
– Hoje não me esperem para jantar!
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