Raquel Gaio. Licenciada em Letras, atua nas áreas da poesia e artes visuais. Escreveu os livros de poesia “manchar a memória do fogo” (Urutau, 2019) e “das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã” (Editora Patuá, 2018). Desenvolve trabalhos entre a fotografia, a performance e o objeto investigando a esfera do íntimo, do tempo e a feição do incontornável. Possui poemas e trabalhos visuais publicados em revistas do Brasil, Portugal, México e Estados Unidos. https://raquelgaio.tumblr.com
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almejar uma terrível limpidez
não ser linear nem doméstica
andar dentro da pedra da infância
desfazer a memória da língua- animal que come o próprio semblante
treinar o idioma que apenas ouço- tornar a língua mais flexível como a sua
nunca esquecer as duas fomes que vi nascendo em sua nuca.
*
é preciso inaugurar uma nova pobreza
para viver dentro do nevoeiro
em verdade, te digo:
sou estratosférica
tenho nos pés um musgo que delira
para esquecer o Nome
através de seu som, nasce em minha bacia uma mulher feita de arquipélagos devastados
como aceitar o irreconstituível?
sigo falhando os começos como posso
estruturando mapas na tentativa de acolher o ferimento que vem da voz
é preciso pactos com a doença
para viver nos rochedos assombrados pelo fogo.
*
é preciso destituir a nomenclatura das divisas
e habitar com louvor os desertos
ser informe no próprio orfanato
-o abrigo antigo da água-
ter na voz um homem exaurido
e os ossos iniciados nas cinzas
a fúria do tempo lavrando o pulmão
porque sabes da montanha inclinada que é o ventre
dentro dele latejamos
como uma esfinge que não se parte
é preciso dizer o teu sangue
ao invés de teu nome.
a imagem não esclarece a caligrafia dos mortos
*
modular as vozes, a sucessão, a queda.
ir de encontro ao irrepresentável
violar o tempo de minha constituição
1.o rosto dobrado no nome
2.o osso invertido na história
3.a destinação aberta e flácida
4.a inabitação que se sabe móvel e invencível
o pulmão atado a uma antiga voz
a carótida em vigília sussurrando a oração
*
me deito num rochedo
mas tua voz não brota mais nessa terra peregrina
enlaço as mãos na tentativa de uma usurpação da presença
-inextinguível gesto
estar rodeada de chão, estar inscrita numa caligrafia pouco traduzida
ser um arbusto comestível, ser cúmplice do sangue que brota dos dias
estou ferida dentro de tua boca
nossos nomes possuem o corpo dos penhascos.
*
estamos sempre perfurando o tempo
temos abismos que rasgam os antebraços
e uma cicatrização forjada na língua dos dias
criamos sempre os mesmos calabouços
e nenhuma procissão nos salva
nossa linguagem é picada pela desmemória
e nossa vigília é abastecida pelo erro
deus fala uma linguagem indecifrável
mas estamos sempre a traduzir
como poço, cavalo ou nós mesmos.
*
você não vê mas há no deserto
uma poça em desequilíbrio, uma oração antiga, movediça
o grito de uma criança, o código preciso da invocação
a penumbra que reside nas distâncias
ter um deserto que não se fecha, enegrecer o calvário
a tíbia, a quentura de uma geografia,
os nomes que moram no abandono
ser a sua própria imigrante a promessa definitiva
a posterioridade falhada
guardar no colo o próprio apagamento.
*
mordo cicatrizes
lenta matéria em decomposição
o vazio é meu leito
único nome possível para a mudez
a minha água, artéria paterna
— lugar de abdicação —
estou me praticando
trabalho o sangue como se trabalha a sede
sou filha da devastação
tenho a cor da guerra
o meu escuro é a morada de uma inacessível fome.
*
sou um testemunho avançado do que não fui
tentar me compreender é inútil, eu adormeço dentro do calafrio
que tu não ousas
preciso redesenhar as feridas, essa topografia que encobre os gestos
sei que isso só é possível no encontro com os esburacados
tenho dificuldade narrativa
minha herança é o sintoma
— eu nunca chego, dizem os lábios adormecidos e
cheios de escaras do pai
eu só presto no trauma.
*
meu rosto é um signo frágil
tenho nele erupções, nódulos, alçapões feito fogo
não passo ilesa à claridade
essa que é reconhecível pela arcada dentária
dorme em mim a máquina de moer precipícios
e por isso, não vingo
sou aquela que tem na nuca
um oceano bifurcado pelo idioma
talvez eu tenha que pegar nas mãos
aquilo que só sei dizer na língua
como quem abraça precocemente o abismo.
*
Os últimos cinco poemas foram extraídos do livro “ manchar a memória do fogo” (Urutau, 2019).
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