Esté é o vídeo da apresentação do livro do Mário J. Herrero Valeiro A razão do perverso (Caldeirón, 2016), que venceu no X Prémio de Poesia Erótica Ilhas Sisargas. Com gravação de Táti Mancebo e edição de Alfredo Ferreiro. A seguir, publicamos o texto lido pelo Mário na apresentação da Crunha em 21 de abril de 2017 no coworking Eléctrica, com a presença do autor, do editor Paco de Tano e do poeta Alfredo Ferreiro.
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Nós, os inofensivos
(apontamentos para uma ética da fragilidade, ou da resistência frágil, ainda nem sei)
Enquanto esperamos a que chegue o dia, não nos apercebemos de que todos os dias são o dia. E é nessa espera que perdemos tudo. Absolutamente tudo.
Se há uma verdade no mundo é aquela que diz que não ofende quem quer, mas quem pode. Aqueles que têm poder. Aqueles que, como bem dizia Humpty Dumpty (isto é, Lewis Carroll), têm o poder para decidir o que as palavras significam. Eu não tenho esse poder. Portanto, eu sou inofensivo. Um inofensivo que tenta construir uma obra poética (e não apenas), mas que conhece o significado de umas escassas cinquenta ou cem palavras.
A Razão do Perverso tentou ser uma ofensa mas ficou apenas em opereta. Bufa. Ópera bufa que descreve, em chave tragicómica, a ilusão em que se sonha uma determinada literatura, a falácia fundacional de um certo sistema literário, a imundície ética, e muitas vezes também estética, em que assenta uma tentativa de cultura grupal baseada na exclusão, na glorificação da mediocridade, na ausência de crítica, na inexistência de língua nacional, na submissão aos subsídios, no amadorismo religioso, na censura ideológica. E digo censura ideológica, que não é unicamente ortográfica. Tragicómico teatro em que deambulam os velhos caciques (o nosso Octavio Paz), as deusas distantes e o seu banal erotismo, as feministas de catecismo, os ruralistas sentimentais, os marxistas fossilizados, as ninfas eternamente adolescentes, os literariamente impúberes poetas gays, os críticos acríticos, as críticas de manual, os censores do aparato: tu, o que tens que fazer é aprender a censurar. Polas palavras literais de um poeta galego a outro poeta galego.
E entre elas e eles, nós, os inofensivos rosmões que imaginam ser niilistas (Emma Pedreira dixit), e que arrastam a suas depressões polos bares, tarefa heroica, ou polo Facebook, expressão perfeita do nosso anarcocapitalismo.
Essa poesia de que falava é, acho, pura elefantíase. Elefantíase lírica que oculta, é certo, obras magníficas, mas que, de forma mais habitual, eleva aos laicos altares vácuas sucessões de palavras. Essa poesia é, enfim, como não podia ser doutra forma, puro capitalismo, com certeza um capitalismo com escasso fluxo de capitais económicos, mas, e isto é inegável, com uma capacidade criativa, para bem ou para mal, extraordinária. Nos estertores da vida nascem as melhores visões. Uma poesia perfeita para um país sentimental. Para uma eutanásia perfeitamente programada.
Vejo agora que A Razão do Perverso é, em certo sentido, uma inofensiva homenagem, falsamente misógina, a caciques, ninfas, críticas e censoras. Sem elas, sem eles, este livro não existiria. Habitar as margens das margens desse sistema literário permite conceber certos jogos inócuos. Até talvez infantis. Eu sou da tribo dos rosmões. Dos que não sabem calar. Dos que não suportam nem a miséria nem os e as miseráveis. Nas margens das margens devemos manter certas obrigações éticas. Certas inofensivas obrigações éticas. Porque não temos poder para decidir o que as palavras significam. Porque só temos cinquenta ou cem palavras para edificar uma obra. Nós, os inofensivos, os que não temos nada a perder, e muito, muito, muito a ganhar.
Na memória do Paco Souto.
Para nunca calar.
Para construir uma obra.
Para vencer, que é o derradeiro e o pior dos nomes da derrota.
Porque este livro é, finalmente, a expressão do absoluto cansaço vital. Pensei que era apenas um divertimento. E também uma diversão. Mas, sei-o agora, é simplesmente a expressão última da inutilidade do combate. Só ofende quem pode. Eu não tenho esse poder.
Nós, os inofensivos, temos unicamente uma perversa razão. E não temos fé. É a sorte de habitar o lugar em que o silêncio sempre perdura. A razão das margens perdurou, perdura e perdurará. Com certeza perdurará. Como perdurará a memória do Paco. A memória de um bom e generoso. Pola sua memória estou hoje aqui.
Saúde e obrigado pola vossa presença, pola vossa paciência.
Crunha, 21 de abril de 2017
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Nota: Segundo o autor, «do livro original d’ A Razão do Perverso (ajuste de contas) foi preciso retirar vários textos, demasiados, para poder cumprir o requisito de não ultrapassar o número de seiscentos versos, estabelecido nas bases do Prémio “Illas Sisargas”». Sob o título da prosaica grossaria (a razão do perverso – poemas descartados), na Palavra Comum o autor publicou os poemas que não puderam vir à luz na publicação em papel.
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