Há muitos anos, quiçá quarenta, chamava a atenção do visitante das Cataratas do Iguaçu o fato de ouvir a Rádio Itapiru, instalada no Paraguai, em três idiomas: castelhano para as notícias, guarani para as canções e português para os anúncios comerciais.
Hoje o viageiro que percorra a zona de fronteira entre o Brasil e o Paraguai, ao largo duma faixa de cem ou mais quilómetros em território paraguaio, fica com dúvidas sobre qual é o país que visita. Os topónimos guaranis dizem-lhe que está numa república que tem esse idioma como oficial. Indicações de trânsito indicam-lhe que também o castelhano é oficial. Mas anúncios empresariais de todo tipo, cartazes de propaganda, nomes de negócios estão quase todos em português. De resto há-os em espanholês (a palavra “loja” substituiu “comercio” ou “tienda”) e, raramente, em castelhano (os de grandes empresas paraguaias como os bancos).
Escutando o rádio do carro, observa-se que, por cada emissora que se exprime em castelhano, há uma dúzia delas que o fazem em português. Parando num restaurante para a refeição é quando se percebe às claras a sensação de não estar no Paraguai: os empregados falam ao cliente em português, a ementa vem escrita em português, a televisão lá está a mostrar um telejornal brasileiro.
Onde estamos logo? No que os nativos chamam de “Brasiguai”. Por se ainda houver alguma dúvida, continuando viagem em seguida aparece um qualificativo híbrido e orgulhoso, Brasiguayo, nome flanqueado pelas bandeiras do Brasil e o Paraguai. Os donos dos estabelecimentos que de tal modo se anunciam titulam-se a si próprios como brasiguaios.
E como se entender o viageiro com eles? Se não quiser ter dificuldades, faça-o em português. O castelhano dos interlocutores é mais guarañol do que lengua de la Madre Patria (o guarani é uma idioma ininteligível: só se alcança a saber do que tratam os seus falantes quando introduzem algum termo castelhano ou português no discurso).
Que fala então esta boa gentinha na casa, ou com os colegas do trabalho? Em absoluta maioria, guarani. Se nos assuntos de técnica (numa terra que dá quatro colheitas ao ano vigiadas por satélite) se exprime em português, onde fica o castelhano?
Na escola. Os manuais dos pequenos estão escritos em castelhano e em guarani. Os professores, seguindo ordens do ministério da Educação (lá longe, em Assunção), ensinam as matérias nas duas línguas oficiais… mas os alunos fazem as perguntas em guarani ou em português.
E como responde o mestre? Em português porque ele também provavelmente seja brasiguaio.
Ora, se não for brasiguaio? Uma mestrinha simpática confessa que ela, que vem de longe, já aprendeu “muito português, de ouvir os meninos e de ver a televisão”.
Estamos pois de fato numa zona de colonização linguística descarada, de imposição da língua oficial do país vizinho pela força dos mídia e da tecnologia do Brasil, grande potência técnica e agro-pecuária.
Para os sócio-linguistas trabalharem no fenómeno, ainda há um aspecto dele a ter em conta: o analfabetismo. Pessoas maiores que não foram à escola nunca aprenderam o castelhano. Metidas no seu mundo rústico, alheias ao rádio, à televisão, não precisavam desse idioma; e quando faziam incursões nos escritórios da Administração eram tratadas no idioma que todos os paraguaios sabem falar, com mais ou menos jeito, desde guarani puro a guaranhol.
Mas chegaram os brasileiros nos tempos de Stroessner, compraram infinitos hectares de mato, roçaram, araram, plantaram, colheitaram… dando ordens em português.
Eis pelo que os “peones de estancia” entraram no mundo das línguas romances não pelo castelhano mas pelo português dos amáveis invasores…
Qual vai ser o futuro do Brasiguai? Algum dia o Mercosul será uma verdadeira união de países ibero-americanos nos que se falam idiomas indígenas além de castelhano e português. E façamos uma simples conta: o produto interno bruto do Brasil é 3 vezes o da Argentina; a população brasileira, 5 vezes a do seu competidor austral. Desde há anos, os centros de estudo de idiomas em Buenos Aires apregoam as línguas de Shakespeare e Camões ao mesmo nível.
Se a isso somarmos o patriotismo dos brasileiros e o seu convencimento de que só são nação pelo idioma português, coisas veremos. Por enquanto, o Brasiguai já é aviso para os países que têm fronteira porosa com “esse monstro criador de cultura” como lhe chamava Eduardo Blanco Amor à República Federativa da Ordem e o Progresso (onde também o guarani é fala materna dum número importante de cidadãos).
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