Para que no intervalo vacilante
para que no escuro haja alguma coisa a que apegar-se
Friedrich Hölderlin
As palavras parecem-se por vezes a taipas que erigimos para nos defender da ferocidade do mundo. Tecem o seu próprio real e ao acrescentarem um real a outro abrem linhas de fuga e potenciam esses novos territórios, um mundo revigorado, uma experiência que procura superar os próprios confins da linguagem. Neste “Cabalos Salvaxes Transparentes na Noite” de Ronsel Pan, a palavra parece recuperar esse sentido primordial: selvagem, transparente, noctívaga e lenta, a palavra erige-se perante o ruído do mundo, a crise temporal que nos invade com a febre do imediato, do horror do idêntico e do liso.
“A cadencia líquida simultánea”
10 poemas em que a poeta cria imagens e visões, dá a ver, com palavras-imagens aquilo que de outra forma parecia invisível, não dizível, informe. A poeta convoca esse pensar-sentir, a sensação: sensação apessoal, aquém da psicologia individual numa clara tentativa de demolição do EU. Ou seja, o poema desvela a sua própria impotência e quanto mais essa impotência se torna evidente, mais ele se torna nesse elemento insuperável.
“Sono escuro na cadeira”
A “transparência” destes cavalos selvagens desperta especial atenção: a poeta sabe que só velados poderão aspirar ao belo, o belo que vincula e que é fundador de duração; a transparência erotiza o texto obedecendo à sua essência indesvendável. Como referia Walter Benjamin na sua Hermenêutica do Encobrimento “nunca se aprendeu uma verdadeira obra de arte senão expondo-a indubitavelmente como segredo”. A poeta enfrenta o mundo actual do visível, explora esse segredo como um caleidoscópico da obscuridade, nesse momentâneo clarão da consciência, o sono, e na cadeira o tempo, esse esconderijo que afinal nos parece faltar nos dias de hoje e que a poeta recupera num instante de deslumbramento e lucidez.
“Ao abeiro do río lento”
Porque a palavra só sendo transparente e selvagem pode farejar a vida verdadeira. Esse rio que lentamente vai aumentando os caudais da verdade, vinculando e nos sublevando de uma declarada falência dos espíritos, das palavras. A verdade é a liberdade deste cavalo, tão livre de qualquer economia, tão livre num jogo sem coerção nem finalidade.
“Animal percorrendo sendas infatigábeis”
Essa palavra-animal que ao percorrer as sendas detém o tempo. Esse animal sem medo, sem medo que tudo se demore demasiado, que as sensações se sucedam cada vez mais depressa. Ele precisa das sendas infatigáveis e lentas para que os acontecimentos possam condensar-se e ser redenção. “O excesso de velocidade destrói o sentido” afirmava Jean Baudrillard.
“Recordos transfigurados de lonxe”
A eternidade do longe tal qual a eternidade do presente, que se alcança numa demora em que o curso do tempo é superado, a eternidade que cintilia como uma luz que se difunde pelo diferente, a alteridade. O longe como uma imagem fulgurante do nada das coisas. A aura que se torna na manifestação de uma distância.
“Aperta de amor incomprensíbel”
A poeta que no fundo quer cumprir com a sua função que é a de poetizar o mundo, o mundo reduzido a avareza do espírito, reduzido à sede de competição, o mundo narcísico; com o seu olhar poético, resvalando os seus olhos vagos pelo que já viu e reviu, descobre as relações amorosas ocultas que há entre as coisas. Ela sabe que podem cair os nomes, os empregos, as promessas de salvação, os deuses, mas, este cavalo selvagem transparente na noite seguirá cavalgando com esse ensejo da paixão, lento, selvagem, belo, comovendo-nos com o absurdo de estarmos trespassados pela inexorável urgência de habitarmos este mundo.
Texto lido na aparesentação de “Cabalos salvaxes transparentes na noite” de Ronsel Pan, na Fundación Luis Seonae.
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