Caderno Galego [01]:
Outra pedra parecida
Recordas aquela cantiga de Meendinho e começas a construir a gramática, um tom, um modo de fala que não é teu nem é daqui e que vai muito torto, é uma fala estranha de tão pequeno ter visto o fogo, voz de barqueiro e remador que daqueles versos nos vai chegando, agora que de novo recordas e dizes o poema e enfolas aquele refrão que era cinema de autêntica velocidade para organizar as poucochinhas imagens do tão melódico século XIII, cinema e pura máquina de fantasiar as coisas do mundo, essas tantas, vertiginosa e festiva e popular máquina de cantar em maneiras ledas as vastíssimas coisas do mundo, recordas aquela cantiga de Meendinho, como ia crescendo o poema e como ia crescendo o mar à volta, maré que não parava de subir e que agora mesmo, ao lado da letra, no computador, não deixa igualmente de subir mas de um jeito tecnológico, com outra música a passar ao lado, glosa e acompanhamento, recordas aquela cantiga e aí tens o filme grande e complexo de ermida que não pode existir fora do filme, a donzela sem barqueiro nem remador que muitos séculos depois continuará a fingir em tantas outras canções, todas elas outras pedras parecidas, narrativas de imaginar aquele som maluco do amor, essa noite sozinha do mundo que tantas vezes é campismo de serena companhia, recordas aquela cantiga de Meendinho em passo de corrida, escola de ritmo e vanguarda, madeira boa para começar a escrever.
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Hugo Milhanas Machado nasceu em Lisboa [1984] e reside na Galiza. Exerceu como docente na Cátedra de Estudos Portugueses – Camões, I.P. da Universidade de Salamanca entre 2006 e 2019 e doutorou-se em Filologia Moderna pela mesma instituição, com a tese Ruy Belo, a ver os livros: ensaios na trajectória de uma obra poética [2015]. Dirigiu e coordenou o LAPELIPOSA – Laboratório Performativo de Língua Portuguesa de Salamanca, o TENSA – Teatro Naval de Salamanca, colectivo de pesquisa de artes de palco, e o programa semanal “Historias de la Música Portuguesa” na Radio USAL [2007-2019]. Desenvolve trabalhos em áreas como os estudos marítimos, a etnografia literária e musical portuguesa, a história velocipédica, os estudos radiofónicos, o teatro experimental e a música electrónica. Integra, com Julia García-Arévalo Alonso, o projecto multidisciplinar GLOSALENTA.
Fotografia por Julia García-Arévalo Alonso.
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