Caderno Galego [03]:
Monteferro
A letra é lenta e porém torneada nos desenhos do vento, um muro grande, que só assim se podem conceber as tarefas do país a caminho do Natal, profunda condição de universidade desconhecida cujos votos se renovam em Dezembro, jeito todo ele educado na contramaré e nos saltos mais estranhos, essa devoção metida nas pedras parecidas, não parar de juntá-las, persegui-las pelas praias de Panxón, com o mar crescido nas ilhas de Monteferro, um espesso vento que vem trabalhando do norte e encorpa connosco, são essas as tarefas, e o autor sonha velhos radares e antigos aparelhos, tecnologia convertida em fetiche e chão do poema, porque com tudo isso ele trabalha, é assim que se vai armando um livro de sonetos a crescer ao lado, preparados os textos no escangalhado som [este som: http://instagram.com/monteferro_/] daquelas máquinas vetustas, e é quando o anjo começa a dançar, porque o anjo mudou e tem poderosas tarefas em curso, é quando o anjo opta pela música e quer depois ficar ali dentro, mexendo como fulgurante estrela num céu de silêncio e fantasias galácticas deduzidas dos filmes, e estudando velhas cartografias lunares, o autor regista em caixas de ritmos e sintetizadores baratos a magia montada, redacção torta para que depois o anjo consiga dançar, e então o autor recolhe as artes de pesca, fecha o livro de sonetos à babugem do porto de Panxón, tem perto a batida analógica de uma máquina antiga, e ali ao lado Monteferro recordou mais um muro parado no mar, esquina de brutas vistas, o oceano todo pela frente a fazer futuro, o autor ainda lembra aquela cantiga de Meendinho, as caixas de ritmo levadas do poema, outra vez esse muro lento, a construção da frase nos jogos da língua, ocupação convicta, sem favores, o autor de variedades está sentado à mesa de trabalho, dirige essas estranhas máquinas de música, regista mais um arranque que virou entusiasmo, militância urgente, o mar dá outra volta, ainda não é tarde, ainda não é tarde, e o autor começa a escrever.
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Hugo Milhanas Machado nasceu em Lisboa [1984] e reside na Galiza. Exerceu como docente na Cátedra de Estudos Portugueses – Camões, I.P. da Universidade de Salamanca entre 2006 e 2019 e doutorou-se em Filologia Moderna pela mesma instituição, com a tese Ruy Belo, a ver os livros: ensaios na trajectória de uma obra poética [2015]. Dirigiu e coordenou o LAPELIPOSA – Laboratório Performativo de Língua Portuguesa de Salamanca, o TENSA – Teatro Naval de Salamanca, colectivo de pesquisa de artes de palco, e o programa semanal “Historias de la Música Portuguesa” na Radio USAL [2007-2019]. Desenvolve trabalhos em áreas como os estudos marítimos, a etnografia literária e musical portuguesa, a história velocipédica, os estudos radiofónicos, o teatro experimental e a música electrónica. Integra, com Julia García-Arévalo Alonso, o projecto multidisciplinar GLOSALENTA.
Fotografia por Julia García-Arévalo Alonso.
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