No mês de agosto do 2009, e à hora prevista, o avião em que viajava aterrou en Lviv. Um aeroporto branco que me cegou com a sua brancura. Erin Moure, a poeta canadiana – que num dia abençoado decidira traduzir um dos meus livros para inglês e que com o tempo se converteu numa das minhas melhores amigas -, queria enterrar as cinzas da sua mãe no cemitério da sua aldeia natal, Velyki Hlibovychi. Eu desejava acompanhá-la e ainda ver o estuário de um dos braços do Danúbio no Mar Negro. A sorte estava decidida e a sorte chamava-se Ucrânia.
Europa? Sim, esta também é a Europa. Nós sempre deixamos a Europa
A Europa é esse território que, na primeira metade do século XX, expulsou implacavelmente a sua população (excedente?) para as Américas. É assim que dois poetas que vivem em continentes diferentes se podem encontrar em Lviv. A pessoa que chega de Quebeque e me espera no aeroporto é a filha de uma mulher que em criança emigrou para a Galiza vinda da Austria-Hungria/Polónia – atualmente a Ucrânia – e de um pai que emigrou da Galiza (Espanha), onde eu vivo. Três de meus avós foram emigrantes em Cuba e Argentina, um deles está enterrado em Camagüey. Erin e eu temos a mesma idade, somos de 1955; ambas temos antepassados que nasceram numa ou noutra Galiza. Somos o resultado desse vai e vem, da travessia e contínuo cruzamento do Atlântico.
A distância entre Velyki Hlibovychi e Lviv é de trinta quilômetros, que fazemos de comboio. A cidade mais perto é Bibrka. Dali, logo após a chegada dos nazis, 200 judeus foram enviados para o campo de concentração de Belzec. Em 13 de abril de 1943, 1.300 foram baleados na estrada Volove. A maioria dos judeus ucranianos foi morta nas valas, perto de suas aldeias. A maioria dos republicanos galegos também foram mortos pelos falangistas de Franco nas valas, perto de suas aldeias. Normalmente considera-se que as áreas de origem dos emigrantes são atrasadas. Não só economicamente: também se julga que vivem isolados e quase fora da História. Gostaria de sublinhar que viver a História sendo tratado como mão de obra barata e exportável é uma forma de vivê-la. E quero acrescentar também que as áreas de origem de famílias como as destes dois poetas – que se localizam na que foi a capital da Galitzia Austro-Húngara – tiveram e mantêm contacto contínuo com o continente americano, bem como com os Estados europeus para os quais emigraram na década de sessenta do século passado; nesses lugares faziam parte do proletariado que ajudou a sua reconstrução após a Segunda Guerra Mundial.
Europa? Sim, a Europa está repleta de povos. Nós nunca nos despedimos dos povos
Um povo — a humanidade — é um ser que surge como os rios. Ele sobe e, porque pode subir, pode cair. É indestrutível, ou seja, pode ser sacrificado um milhão de vezes, mas nunca destruído. Um povo é inesquecível, ou seja, um ser vivo que não precisa de nós como indivíduos para existir. Nunca está do lado do poder, seja qual for o poder; está do lado do potencial, da possibilidade, e responde a essa possibilidade. Não se confunde com os seus representantes nem com quem o governa, porque não é uma representação, é uma presença na Terra.
Um povo tem memória de muitos tipos de governos e de todos os modos de produção que o atravessaram, mas o seu corpo precede todos eles. É uma força que derruba qualquer regime antigo, e todos os regimes são antigos. É o ato de se levantar, de irromper, de cantar, de ser derrotado ou de vencer, mas nunca é o ato de governar. É incompatível com o governo, com qualquer tipo de governo.
Um povo é uma intensidade que não deve ser confundida com um estado, ou estado-nação, ou qualquer divisão administrativa. É um rizoma e cresce e estende-se sem levar em conta nenhum obstáculo burocrático. Um povo sempre carece de papéis. Instituições, qualquer tipo de instituição, não o emocionam, mas sabem o seu preço justo. Uma humanidade é, apresenta-se, derruba, pode cair, é contemporânea, avança.
Europa? Sim, a Europa está repleta de pensamento. Nós nunca deixamos de pensar
A esperança sabe esperar, mas nós, sapiens, somos treinados para desesperar.
Desesperamos porque às vezes não conseguimos visualizar um futuro diferente do de hoje. Desesperamos porque fomos preparados para acreditar. A crença neutraliza a incerteza, mas não pode evitar a catástrofe. Estamos acostumados a viver em catástrofes e tudo o que sabemos é que mais uma catástrofe está por vir.
No seu ensaio “Do Futuro ao Porvir: A Revolucão do Vírus,” publicado pela primeira vez no jornal Le Monde, Jean-Luc Nancy contrasta crença com fé.
A fé, para ele, é aquela virtude pela qual admitimos que não podemos manter tudo sob controle. A fé espera e anseia porque sabe que o risco está na raiz da liberdade. A fé é um pensamento capaz do único ato que podemos realmente realizar com as nossas vidas: o risco de viver. Significa abrir-se a um futuro diferente de submissão e catástrofe.
A fé move montanhas porque nos capacita a agir de maneiras que não levam à ilusão de controle e poder. Talvez possamos ver, a partir disso, que a democracia é o que nos permite entrar juntos no futuro. O que a democracia nos oferece é uma forma de partilhar, em igualdade, o fardo da finitude e da ignorância, porque todos enfrentamos a mesma incerteza.
“É no naufrágio que nos encontramos de novo,” conclui Nancy.
Europa? Sim, a Europa está repleta de arte. Nunca nos despedimos das imagens
E assim vamos sonhar de novo.
Voltaremos a sonhar com esperança, sonhar com esperança como retratado na gravura de Andrea Pisano nas portas do Baptistério Florentino. Sonharemos com ela no fresco da Capela Scrovegni, onde Giotto também pintou a esperança, e aqui voltaremos a contemplá-la.
A utopia — a esperança — tem asas, mas não as usa; ela estende as mãos e não sabe se a sua espera será um dia coroada de sucesso. Ela vive nessa incerteza e espera.
Aceitei o convite para escrever esta carta em Agosto de 2021. Naquela época, estávamos focados numa Peste. Agora, enquanto escrevo esta carta, no final da Primavera de 2022, vimos o cavalo vermelho da guerra emergir do belo livro do Apocalipse.
A primeira guerra da minha memória foi a Guerra dos Seis Dias. Quando era menina, senti-me magnetizada pelas imagens dos tanques a preto e branco, porque era assim que a televisão era transmitida na época. Achei impossível relacionar esses tanques com os nomes dos territórios por onde passavam. Esses nomes eram os que eu conhecia da história bíblica que estudamos na escola. Naquela idade, eu não tinha palavras para descrever o que estava a viver; hoje posso afirmar que uma das possíveis definições de guerra é a fratura que ocorre entre língua e território. A linguagem, independentemente da língua que falamos, é pulverizada pela guerra e nunca mais pode ser o que era. Amarga é Tróia, e amarga a fúria cantada pela musa.
No início deste ano, em 17 de março, o aeroporto de Lviv foi bombardeado. Penso nas bombas de fósforo branco, penso nas aldeias de Hostomel e Irpin, e o que surge incessantemente na minha mente são as lembranças da minha viagem à Ucrânia em 2009.
Certamente um dos momentos mais emocionantes da minha vida foi chegar ao porto de Odessa descendo os degraus em que Sergei Eisenstein filmou algumas das imagens mais inesquecíveis do Couraçado Potemkin.
De Odessa, partimos para Vyklove e o “Kilómetro Zero”, onde um canal do Danúbio entra no Mar Negro. Igor, um lipovano local, trouxe-nos no seu pequeno barco para esta extraordinária linha de demarcação.
Ficamos na rua Avhhustyana Voloshyna e fomos felizes na Ucrânia, em Lviv.
A Europa? Sim, a Europa está repleta de impérios que querem uni-la, para assim manter o Ocidente e o Oriente sob seu domínio exclusivo. Estamos sempre dizendo adeus a impérios, a cismas
Não preciso lembrar-te de nada disso; estudámos na escola. Eu só quero oferecer um pensamento – possivelmente tolo – e contar uma história.
O pensamento tolo é que a Europa é dual: o oeste de Roma e o leste de Constantinopla/Moscovo. O Oeste é uma colónia dos EUA, o Leste uma colónia da China. Enquanto o Ocidente não reconhecer o Oriente e vice-versa, enquanto as duas metades do símbolo não se unirem, a Europa — a Europa — permanecerá aquela jovem raptada pela luxúria de um deus antigo e patriarcal.
Agora a história. Uma jovem, que poderia ter sido modelo de Giotto, chega a um posto avançado no deserto. Pelos seus trapos sabemos que ela é uma mendiga. Ali, naquele deserto, o Tempo derrama os seus dons sobre ela. Ao lado dos dois (Utopia e Tempo) está um homem que cada noite rabisca a sua fúria num paralelepípedo de madeira. O homem é velho e viveu toda a sua vida num país onde as árvores crescem facilmente; na sua juventude ele era um lenhador. A casa onde mora tem um jardim, e numa das suas paredes ele instalou um paralelepípedo de madeira maciça que havia cortado durante o derrube de florestas. Todas as noites ele vai até a parede e raspa o bloco de madeira com toda a força. É o amortecedor dele. É o amortecedor dele. O que ele realmente quer é bater com a cabeça na parede até que seu crânio se abra para que ele fique livre do horror da vida – apesar de ser uma vida feliz. Arranhar a madeira noite após noite permite que ele controle a sua fúria e não se transforme num assassino.
Os três estendem os braços como a Esperança — também conhecida como Utopia —, sem saber se algum dia irão satisfazer o seu desejo; eles não sabem se poderão usar as suas asas e voar felizes. O seu acto moverá montanhas porque eles sabem esperar, e sabem conceber um futuro diferente daquele que os subjuga. Eles escolhem viver entre aqueles que se recusam a ser contados com os assassinos.
Que todos possamos ver um amanhecer em que a Europa, Europa, não sofra os caprichos de um deus patriarcal, nem o ciúme de sua divina consorte.
Que venham mais mil primaveras a esses campos que compartilhamos e às línguas ainda hoje injuriadas nas quais alguns de nós escrevem e falam, e nas quais amamos intensamente.
Chus Pato
traduzido por Ricardo Marques
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Chus Pato (Ourense, 1955) escreve em galego e é autora de 11 livros de poemas, publicados entre 1991 e 2019. Os seus livros têm sido traduzidos e publicados nos EUA, no Reino Unido, Canadá, Espanha, Argentina, Portugal, Holanda e Bulgária, e tem poemas incluídos em dezenas de antologias galegas, espanholas e internacionais. Apresenta-se regularmente em festivais de poesia por toda a Europa e nas Américas, e o seu trabalho foi consagrado com vários prémios, incluindo o Prémio Nacional da Crítica (Espanha) e, por duas vezes, com o Prémio Losada Diéguez. Pato vive no coração da Galiza, no noroeste de Espanha, perto da floresta de Catasós, onde se encontram os castanheiros mais antigos da Europa. O seu livro mais recente é Un libre favor, traduzido por Erín Moure em inglês como The Face of the Quartzes (Veliz Book, 2021). Ela é membro do PEN Galicia e da Real Academia Galega.
Ricardo Marques Ricardo Marques (Sintra, 1983) é poeta e tradutor, tendo traduzido, entre dezenas de outros poetas, Anne Carson, Billy Collins e Patti Smith. Publicou em 2021 a antologia Já não dá para ser moderno (Flan de Tal), onde propõe a leitura de seis poetas portugueses de agora. O seu último livro é Desiderio, uma antologia pessoal dos seus poemas (não (edições), 2022).
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