Das águas doces e salgadas de Compostela nasceram chios de gaivota.
Reinterpreto, querido Xosé, os sons da marejada interna que abrocharam na travessia da tua Transfusión Oceánica dos últimos dias do verão entre o Sar e o Sarela.
Havia já nove luas que tinha sentido por vez primeira as ondas bravas da tua voz. Acarinhada polo frio da Póvoa do Caraminhal, em homenagem a Anxo Rei Ballesteros, dançava a Fonte dos Quatro Canos ritmos cálidos de música e poesia. Arroupava-me a companha de Maria José Fernández, quando foi apresentado um poeta que me surpreendeu com versos de mar, a espelhar, nas escamas prístinas, saudade de onda renascida para salgar as pedras e o sentir. Entusiasmei-me entre a lembrança de Manoel António e a constatação de que aquele caminho ainda era vivo: um lobo estepário de mar lançava redes e amava nas texturas puras da centola e da quelha. Perguntei a Maria José se o conhecia, perguntei polo seu nome que ela teve que repetir várias vezes, porque o meu entusiasmo perdia outras referências alheias às palavras bravas do marinho. Ante as minhas mostras de admiração; a Maria José acabou por confirmar que o conhecia bem, que aquele poeta das águas bravas chamava-se Xosé Iglesias e que com ele partilhava amor polas palavras e caminhos de vida. Ficaram nome e ser na caixa grande daqueles a quem agradecer por arte e existência.
Desde então medrou o mar. Junto à Maria, querido José, tens visitado as ondas o Vale do Pico Sacro para encher os castanheiros de buguinas. Aprendi un idioma de sereas chegado do teu mais formoso presente e do meu compromisso de aprender a vibrar na caracola, coa arquitectura sonora arrecendendo o cheiro do mar. Encontramo-nos em Arteijo, à Lus do Candil de Modesto e de Alba, em festa mística de palavras; encontramo-nos; no círculo mágico da primavera de Ramil, na Eira da Joana, para aturujar à Terra. Encontramo-nos na casa, em Ardilheiro, onde amarraste a um quadro de Juanel Ponte, desenhador da água, o teu semblante asulagado nas escumas. Também nos abraçamos em Julho em Compostela, na maré da Mátria, com o teu barco a repor força, nove metros de liberdade então em porto; encontramo-nos em redes internáuticas, encontraremo-nos em portos e ronseis, com o lenho vivo trazido por Maria José, com a estirpe de lobos de mar espelhada no olhar do Xavier, com a esperança do Alexandre, da Iara e do Alejandro a admirar a vontade de sons marinhos.
Quatro estações de recaladas para agradecer, no meu sentir e no da minha família, também no reflexo dos olhares espelhados, a tua poesia salgada. Um ofício de honestidade, porque escreves sobre aquelo que conheces e vives, premissa na que insiste Xosé Neira Vilas, que a exemplifica no interesse de Alejo Carpentier sobre o conhecimento do mundo labrego do autor do Vale do Ulha, trás ler as suas Memórias de um neno labrego: “Hay que escribir sobre lo que se conoce”, afirmava Carpentier, segundo lembra Neira Vilas, e tu transcreves no caderno de bitácora rumos e sons, versos do vento. Poetizas um eco da emoção partilhado com o grande Bernardino Graña, com o pequeno César Iglesias, com todas as mãos esculpidas co cicel húmido do salitre e há algo nesse eco que não me é alheio, qualquer onda que me prende aos ronseis de estelas silenciosas que povoaram as genéticas do coração salgado. Partilho, humildemente, a emoção do sol e do vento, procuradora de ilhas, acarinhadora de marés, faroleira temporal, catadora de sal, remeira das singraduras.
Sabes que poetas e marinheiros partilhamos o costume de prender nas redes cardumes e palavras: tanto aparelho para mostrar apenas o agradecimento por uma travessia sonhada no Primero Villar e nas memórias de outras naves, trajetória entre o Rockall, o Grande Sole e as costas galaicas, com a única obediência ao vento. Naveguei no teu barco, partilhei o Oceano com a permissão única de quem sente em ti a emoção do mar de Duio perto do som do fim da terra, com a força do Pindo e a luz das gaivotas das Lobeiras, ondas bravas do Rostro a criar voz, Canelas, Estorde, Langosteira, Mar de Fora, Cintolo, Cee… Povo de redeiras, nos cimentos da néboa do abrente.
Medre o mar para ti e para nós: medre na companha de Paco Souto, o poeta-editor que criou o estaleiro para os teus versos, de Modesto, Robre, que pintou o casco do cartapácio de acolhida, na de Xurxo Souto que apresentou o limiar com a voz emprestada do vento, no canto de Miguel Alonso que brua nas memórias dos lobos de mar. Medre na companha de Maria José, filha das árvores, poeta das florestas, na de Luz Fandinho que cruzou mares em busca de ternura, na dos lobos de mar, astrónomos de caladoiros invisíbeis com mans curtidas nun millón de versos, na do teu bisavó Paco, que nomeia os ventos do crepúsculo, na das mães marinheiras, Xulia e Lucía Miguens, para a mariscadora que nos ensinará a escrever con cunchas de cores. Medre em Hassane Diob, o teu companheiro de sonhos entre as cadernas dun tempo. Medre em cada Poeta desta terra, em cada labrega, em cada pescador, medre o mar na Terra mesma, caminho de amor e liberdade. Medre, solidária, esta emoção que tendeu sal no rosto de Compostela.
Nas vinte vinte milhas que navegas iluminado pola luz da Torre cabe um oceano transfundido. Nos nove metros que te acolhem há lugar para a liberdade. No teu livro cabem todas as naves. No teu verso vibram as memórias sem data de um astronauta lírico.
O som do vento humedece esta emoção, pescador de palavras.
Rumo ao sol.
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