O medo está inscrito no nome de família.
A luz do sol ia de encontro a uma garrafa. Era uma garrafa verde. Havia alguns buracos na garrafa devido à força daquele clima e à acção de transeuntes. Era um dia de nuvens cinzentas, e o vento soprava cada vez mais. Mas o político estivera no centro de uma varanda daquela casa que os seus pais tinham herdado.
Erguida há muito e muito tempo a casa era uma sucessão de divisões e anexos. Uma série de escadas desembocava no anexo favorito do político. Havia naquela série de escadas alguns mosaicos, que não mediam mais do que uma chávena de café. Aqueles mosaicos eram cenas do antigamente, um padrão de beleza que representara muito trabalho. O político descia a série de escadas com um livro no seu bolso direito, e cantava a última frase que lera.
“A luz daquilo que retiras da sombra é um pedaço de ti de novo conhecido na tua mente”.
O político tocava na capa do livro. Descendo um degrau de cada vez o político, qual membro de uma espécie de procissão, cantava a plenos pulmões. No seu fio de rayon a garrafa rodava sem parar. E alguns buracos deixavam entrar uma luz que tinha pouca consistência. Parado num degrau o político aproveitou para contemplar a garrafa. Mas ao sentir um prurido na coxa direita o político mexeu rapidamente o braço direito, e o livro caiu no chão.
A lama ocupara as imediações do anexo, e o livro, disposto na horizontal, estava sujo. Era um bloco inserido naquela poça de lama. Mas a noção de assimetria sossegava o espírito do político, que sem se mexer sentira a força daquele tempo. Dedos de cor amarela tocavam na capa do livro.
“Finalmente o livro caiu”, disse uma voz que parecia um rangido.
Não havia margem para dúvidas. O riso era o riso do pai. João Ferro de Silva havia posto um óculo grosso, que sempre colheu elogios. O político era o seu segundo filho, Victor Rolim de Silva era o primeiro filho. Esse era o seu filho preferido; e não escondia esse facto.
Naquela casa João era quem destruía a erva daninha, apesar de ter perdido o seu braço direito num acidente com um tractor. Com efeito, João investia no sector agrícola, e evitava ao máximo trabalhos manuais. De manhãzinha, João cumprimentava tranquilamente os trabalhadores de sua casa. O óculo verde do pai tinha marcas, e o político olhava para o seu pai.
“Tens sempre o livro”, disse João.
“O livro caiu, eu distraí-me com este tempo.”
“Então, este tempo é útil. E a lama? O teu livro afunda-se.”
O livro que estava na lama parecia um bloco de gelo.
“Não mexeu. Nada. E a lama? Não faz mal a nada”, disse o político apanhando o livro.
Gotas de lama espalhavam-se pelo chão. O vento puxou a chuva, e a lama parecia vibrar. De vez em quando, as nuvens moviam-se lentamente.
“Pedi ao teu irmão que fosse até ao alto da herdade. Com certeza, o teu irmão vai revolver tudo.”
“Aquilo continua, deveras? Um estudo de caso.”
“Não te surpreendas. Se largasses o teu livrinho, não chegaria a este ponto. Cão do inferno.”
“A responsabilidade é do responsável.”
“Não entendes a responsabilidade, meu filho. Um livro? Não te protege de nenhum animal danado. Não te protege de quaisquer ameaças de ninguém nem te protege dos golpes do acaso.”
O pai pegou num lenço, por forma a limpar o seu óculo. Então, uma mancha foi removida, e a conversa parou, qual momento de reverência. Os trabalhadores estavam na sua pausa. As vozes daquela gente do campo tinham força. Havia chaves e moedas, que iam passando de mão em mão. E os trabalhadores vestiam uma espécie de manto com capuz, uma roupa que era rasgada aqui e acolá. O escárnio era o pão nosso de cada dia, e era a música daquele grupo.
Um dos trabalhadores perguntou se mais alguém ouvira falar sobre aquilo que o tio Sebastião viu. Nessa noite o tio Sebastião viu vacas ao longe, e por onde nem sequer andavam aqueles animais. Uma dezena de luzes parecia uma dezena de vacas, e o vento entrava naquela sombra.
“O que é que seria isso?”, perguntou o tio Sebastião vezes sem conta.
“Boa sorte”, disse o político olhando para o seu pai.
A passagem das nuvens parecia um fenómeno só daquela herdade.
“Não te é útil, pois não? Se te juntasses a nós nisto verias o bom de te dar a minha bênção”.
“Até logo, pai”, disse o político olhando para o livro.
Uma espécie de eclectismo em termos musicais era uma característica do político, que normalmente não passava três dias sem se servir da sua bateria. A sala acústica assemelhava-se a um daqueles locais interditos. Afastem-se aqueles que desvalorizam a música. Na verdade, o político começara a aprender bateria por si mesmo. A firmeza de ânimo, o riso, o embate entre componentes do instrumento e a técnica. O político mostrava ser um baterista desembaraçado, e mostrava ser dono de uma concentração que normalmente o fazia entrar em transe.
De vez em quando, o político enganava-se completamente. Mas o político continuava a tocar. Era um centro de ondas invisíveis, e havia luz sobre a pele, assim como filamentos e metal. Havia rangidos e pautas em toda a parte. Há dias que o político praticava a bateria de Wish you were here. O rosto do político parecia ficar cheio de prata. Depois, gotas de suor caíam sobre uma máquina fotográfica, que estava junto à bateria, e que estava a bater com a lente no chão. Era uma máquina fotográfica verde.
(…)
**
Fragmento do conto “Casebre” de A Cor Verde, obra que conquistou o PRÉMIO LITERÁRIO GERMANO SILVA (ROTARY CLUB DE PENAFIEL), 2018, e esta obra é composta por dois contos, “Vedação” e “Casebre”. Jaime Soares nasceu a 14 de Janeiro de 1987, em Vila Nova de Famalicão. É licenciado em Línguas, Literaturas e Culturas (Português/Inglês) e mestre em Estudos Anglo-Americanos (Literatura e Cultura), pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apresentou algumas comunicações em conferências no Porto, em Braga e em Boston (neste último caso, in absentia). A revista da Don DeLillo Society inclui um artigo da sua autoria intitulado “Don’t blame the players, blame the ‘system’: a systemic reading of Don DeLillo’s The Names” (2017). Por outro lado, a Revista Germina e a Revista TriploV, de Artes, Religiões e Ciências, contam com textos da sua autoria.
Atualmente, Jaime Soares trabalha na indústria têxtil, e lê e escreve nas horas vagas.
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