O Professor Fernando Venâncio é, por direito de obra, o herdeiro do ínclito Professor Manuel Rodrigues Lapa: não há portugueses que tanto amassem a originalidade galega, tal vez por terem alma de cientistas, inimiga de preconceitos. Eles sabem que para teorizar do português com propriedade não se pode crer nos passarinhos emprenhados: o português, língua universal, não surdiu da lezíria lisboeta mas das montanhas “do Norte”.
Aos trabalhos hercúleos de Rodrigues Lapa sobre a unicidade galaico-portuguesa, Venâncio soma uma linha de investigação que também provoca temores na Filologia e na Historiografia Oficiais da República Portuguesa: o castelhanização do idioma do Estado, a níveis que para os galegos atingem o ridículo.
Fernando Venâncio, lá nos frios húmidos da Holanda onde exerce ciência e docência, utiliza instrumentos que Manuel Rodrigues Lapa desconheceu (lembro as suas fichas e conservo com devoção as suas cartas a máquina com correções entre linhas). A telemática ajuda-o a pesquisar e a redigir. Assim chega com a pesquisa a minas linguísticas inexploradas e escreve com precisão esmagadora.
Já nos fizera gozar com o seu estudo dos castelhanismos crescentes na obra de don José de las Canarias (sempre ajudado por doña Pilar la Sevillana, grande filóloga, autora de tese com importante enunciado: “El gallego es portugués mal hablao”). Não sei como sentariam no establishment de Portugal essas descobertas do amigo Venâncio mas também não sei de ninguém que se lhe revirasse…
Bem, senhores. Pois, por se não lhe abondasse com a malheira a dom José o Nobilíssimo, agora o Fernando abriu “causa geral” contra todos os patrícios que desde o século XVI para cá vieram a meter a fala da Castela na sua. Publicou O castelhano como vernáculo do português. O trabalho põe à vista uma teima por dar a bem-vinda a termos castelhanos que não faziam falta, pois não eram invenções feitas na Castela, aproveitáveis em qualquer língua, mas substitutos desnecessários. O fenómeno foi semelhante ao que sofre o castelhano moderno em relação ao inglês, com atrocidades como “inalámbrico” em lugar do bem assentado “sin hilos”.
Mas por que essa tendência? Eis logo onde se vê o cientista Venâncio arriscando tese: porque nos tempos das Hespanhas os portugueses quiseram jogar a iberistas, a que no português coubesse todo quanto lhes vinha do Leste peninsular conhecido por eles (nada de basco nem de catalão). Houve uma sucessão de gerações de portugueses que foram mesmo bilíngues (por certo, ajudados pela Igreja que já castelhanizava duramente a Galiza). Ficava-lhes simpático o castelhanizarem e, como eram os cultos do país, espalharam entre a gente, analfabeta, cães de palheiro aos feixes.
Esse fenómeno entra no século XVIII, quando Portugal, como o resto da Europa, se torna galicista; e será de aí para frente que os estudiosos da língua oficial tentem a procura do purismo… sem que deixe de haver autores, fazedores de corpus literário português, a manterem aberta a torneira das palavras “espanholas”. E assim até dom José o Iberista.
A um galego culto, palavras como “trecho”, “palito”, “tejadilho”, “munheca”… soam-lhe ao que fedem: a parte de la Lengua del Imperio. Outras como “lágrima” ou “lábio” não são do seu gosto; não as usaria; e –como sinala Venâncio no seu estudo– sempre que possa, um galego “estudado” dirá e escreverá “doado” para evitar “fácil”. Porque a diglossia do Impaís Consciente é militante; os galegos nunca tentaram abraçar o mundo que fala castelhano, que os oprimiu, que lhes quis fazer esquecer a fala familiar com a escola e com os mídia. Venâncio escreve que na Galiza há um diferencialismo salvador, algo que não lhe viria sem proveito a Portugal…
Como um sempre deve fazer crítica do que lê, quanto mais se for escrito por um amigo admirado, não quero deixar Palavra comum desta volta sem dizer que, sendo o Fernando Venâncio pessoa de espírito matemático, em O castelhano como vernáculo do português não fez quantificação de termos espanhóis no português, com as suas frequências da aparição. Estudos semelhantes há para os termos franceses no inglês, e para os árabes no castelhano.
Mas tenhamos paciência. Qualquer dia esse humanista que pensa em neerlandês sem deixar de sentir em português pode-nos surpreender dando satisfação a tal demanda. Sempre será bem-vinda pelos que queremos bem ao povo que ainda espera por um Dom Sebastião que, se calhar, também tentara falar castelhano.
You might also like
More from Críticas
Sobre “Estado Demente Comrazão”, de Paulo Fernandes Mirás | Alfredo J. Ferreiro Salgueiro
Estado Demente Comrazão é um livro complicado. É por isso que não está na moda. Parabéns ao seu autor!
O tempo das “Não-Coisas”. E o uso excessivo das redes sociais segundo Byung-Chul Han
"O que há nas coisas: esse é o verdadeiro mistério" Jacques Lacan Agarramos o smartphone, verificamos as notificações do Instagram, do Facebook, …