“Se os escritores, inventores, cientistas, artistas e os livres pensadores, que mudam o conceito da humanidade, são considerados loucos… O que dizer dos que se vangloriam de serem normais, mas não têm coragem de mudar a própria vida?”
Abro este texto com um trecho escrito por ela. Escritora, jornalista, relações públicas e técnica de enfermagem é, sem dúvida, uma das mulheres mais ricas que já conheci. Engana-se, porém, quem pensa que riqueza é sinônimo de bens materiais. Falamos aqui, sobre riqueza de alma. E haja riqueza… Não a apresentarei, estendendo a ela um tapete vermelho, pois isso iria exatamente na contramão de seus valores. Buscarei apresentá-la, então, sob o olhar de quem, como ela, gosta de conhecer almas e contar suas histórias. Apresento-lhes, Cláudia Canto.
Nascida na periferia de São Paulo (Brasil), mais precisamente em Cidade Tiradentes (Zona Leste da cidade), Cláudia Canto é apaixonada, desde pequena, por literatura. Filha de mãe analfabeta e pai semianalfabeto, nada a impediu de desenvolver, logo cedo, o gosto pelos livros. Em sua adolescência, Cláudia já lia Dostoiévski. Aos 15, 16 anos, se arriscava em seus primeiros poemas. “Eu saía para passear com algumas amigas muito bonitas e os meninos olhavam primeiro para elas e, dificilmente, para mim. Mas aí eu comecei a decorar uns vocabulários difíceis e passei a conquistar pelo meu conteúdo.” A “tática” de Cláudia se tornou uma maneira, inclusive, de não se deixar levar por homens superficiais, que se interessassem apenas por forma e não pelo conteúdo. Até hoje, ela acredita e transmite para adolescentes e mulheres, que a vivência e a leitura são as principais “armas” para contornar homens “cheios de conversinhas”.
Foi através da paixão pela leitura, que Cláudia conheceu um homem que se tornaria, em suas palavras, “um desses anjos de luz que aparecem”. Em uma de suas idas com as amigas ao Parque Ibirapuera, em São Paulo, Thomas, um alemão que se aproximou dela, ficou encantado com seu conhecimento. “Ele foi a primeira pessoa a ler um de meus poemas”, ela conta. Engenheiro, inventor e falante de sete línguas, Thomas, que é seu amigo até hoje, percebeu rapidamente o talento e a garra de Cláudia. Transmitiu a ela muitos valores positivos para sua carreira e passou a incentivá-la incessantemente a ir para a Europa, a fim de adquirir bagagem cultural que lhe acrescentaria muito como escritora.
E Cláudia foi… Após se formar em Técnica de Enfermagem e trabalhar na área, conseguiu juntar cerca de 500 euros, bancou sua passagem e partiu rumo a Portugal, ansiosa para chegar na Europa repleta de cultura com que sempre sonhara. Ao chegar, porém, apesar de realmente entrar em contato com a cultura a que aspirava, descobriu que permanecer um tempo por lá não seria nada simples e que teria que se submeter a certas condições nem um pouco favoráveis. Se brasileiro já sofre preconceito em alguns países do exterior, nem é preciso falar que mulher brasileira, negra, sofre ainda mais… O que a salvou, em muitas das situações de preconceito e machismo que encarou foi, justamente, sua capacidade de argumentação adquirida através da leitura.
Vendo-se na necessidade de trabalhar para permanecer um tempo em Portugal, Cláudia iniciou sua busca por um emprego. Após duas tentativas malsucedidas como empregada doméstica em casas de famílias, tentou a sorte em uma terceira casa, onde vivia um casal da terceira idade. A casa era, na realidade, uma mansão e, os donos, praticantes de costumes extremamente arcaicos da velha Europa. Além de tratarem empregadas domésticas de forma bastante preconceituosa, determinavam para seus funcionários, quase um “cárcere semidomiciliar”, do qual eles só poderiam sair aos domingos.
Apesar da situação desesperadora de se ver praticamente presa dentro de um palacete, Cláudia se determinou a permanecer por lá durante um tempo razoável. “Eu não queria voltar como uma derrotada”, ela conta. Mesmo sabendo que seus planos não estavam seguindo exatamente como ela sonhava, conseguiu transformar seus novos desafios em um dos principais passos para a sua carreira: começou a escrever um livro descrevendo, como em um diário, cada dia que vivia dentro daquele “cárcere”. O nome do livro: “Morte às Vassouras”.
Após quase um ano em Portugal, retornou ao Brasil com o livro em mãos e uma nova batalha: encontrar uma editora que valorizasse o trabalho de uma mulher negra nascida na periferia. Foram dois anos e meio de buscas e tentativas falhas até que, com a ajuda de Thomas, conseguiu que Morte às Vassouras fosse publicado, em 2002, pela Editora Kazua. Tratava-se da realização de um grande sonho, mas apenas do início de uma saga cheia de superações e, principalmente, determinação.
Cláudia Canto é dessas pessoas que não se contentam com pouco e que enxergam poesia em ações, pessoas e histórias. “O escritor, antes de tudo, é um ladrão. Porque é só com a alma dos outros que ele consegue escrever suas histórias. Eu sou ladra de almas.” Essa frase da escritora, não apenas a descreve, como explica o que sucede o retorno de Cláudia ao Brasil: após publicar seu primeiro livro, sai em busca de um trabalho e o encontra, “simplesmente”, em um hospital psiquiátrico, onde trabalha como enfermeira durante um ano. “Quando eu cheguei lá, um homem se aproximou de mim e apontou para os colegas: ‘aquele é esquizofrênico, aquele é bipolar, aquele toma Diazepam e aquele Gardenal… E você deve estar se perguntando o que eu tenho, né? … Eles que não acreditam, mas sou genro do George Bush e só não saí com a Madona porque não quis.”
Desta experiência intensa e repleta de “leituras de almas” no hospital psiquiátrico, sai o segundo livro de Cláudia: “Bem Vindo ao Mundo dos Raros” (2004). Dois anos depois, ela publica seu primeiro romance: “Mulher Moderna tem Cúmplice”, este sobre violência física e psicológica contra mulheres a partir de relatos registrados pela autora após conversas e vivências com mulheres da periferia e outros lugares.
“Cidade Tiradentes, de Menina a Mulher” é o quarto, porém não último livro (Cláudia já está trabalhando na próxima obra). Aborda de forma lírica (marca registrada da autora) o maior complexo habitacional da América Latina, onde Cláudia viveu a maior parte de sua vida. Recentemente, ela se mudou para a região central de São Paulo, mas, ainda assim, não esconde sua enorme paixão pela Cidade Tiradentes. Além de visitar constantemente a mãe, faz questão de afirmar que não troca por nada, por exemplo, a experiência única de fazer compras nas feiras do bairro ou de desfrutar das atividades culturais do local.
Cláudia relata que algumas pessoas na Cidade Tiradentes não entendem como ela, jornalista, escritora de quatro livros publicados, rica em experiências, ainda se aventura em compras de frutas baratas na feira, entre outras coisas. A resposta dela para tais indagações é sempre a mesma: “eu sou rara, rica e milionária”. Tal frase, inclusive, se tornou um de seus maiores registros. Não se trata de riqueza material, mas de alma e, quanto a isso, ela me explica da melhor forma possível: “A alma não tem cor, a alma transa melhor, a alma é fodida… E as pessoas, ainda assim, colocam a alma na gaiola.” Ela explica que só descobriu o seu poder, depois de se dar conta de que era rara, rica e milionária e que existem muitos pobres que “acham que são pobres” e ricos que “acham que são ricos”. “Muitas pessoas na periferia não se dão conta de sua riqueza. Acham que são pobres, mas são ricos…. Para não sermos capachos da elite, do governo, temos que reconhecer a nossa riqueza. Descobri só com quarenta anos que aquele berço que tentavam me colocar, era rico.” Cláudia acredita que o separatismo só gera mais ódio e que já está mais do que na hora das pessoas perceberem que precisam umas das outras e devem se misturar. Mas ela deixa claro que a transformação só é possível, através do amor: “O amor é três vezes maior que o ódio. O meu trabalho, só dá certo, com o amor… ”
É com a constatação diária de sua riqueza e com esse enorme amor por seu trabalho e pela própria vida, que Cláudia desenvolve trabalhos sociais também riquíssimos. Através de palestras em locais como a Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), presídios, clínicas psiquiátricas, casas de repouso e escolas, ela busca transmitir que todos somos “raros, ricos e milionários”. Relatando e até mesmo interpretando em cenas teatrais o próprio exemplo de suas batalhas, mostra em suas palestras que a constatação de nossa riqueza, unida ao amor, é o primeiro passo para transformações.
Imagine uma jornalista que, determinada a conseguir a pauta, sugere para uma revista, uma matéria sobre o “réveillon no Complexo do Alemão” (bairro localizado na Zona Norte do município do Rio de Janeiro composto por 15 comunidades). Sim, falamos de Claudia Canto, e a história se passa na virada de 2010 para 2011. Assim que a sugestão de pauta foi aprovada, pegou, em pleno 31 de dezembro, um ônibus de São Paulo até o Rio de Janeiro e, ao chegar lá, um táxi rumo a seu destino. Sem conhecer ninguém, se aventurou pelo complexo e acabou passando a virada do ano com uma família que a acolheu muito bem. Após a experiência, transmitiu com seu olhar extremamente sensível, as vivências que teve por lá. São histórias de vida como essa, que tornam Claudia rara, rica e milionária. Sem medo de seguir seus sonhos, conta que desde que descobriu sua riqueza, deixou muitas das inseguranças de lado e passou a viver a vida da forma como ela deve ser: intensa. “Tirei a vestimenta de vítima. Os livros me deixaram atrevida. Eu não preciso pedir licença para ser quem eu sou.”
Atualmente, Cláudia está escrevendo seu quinto livro. Já apresentou a obra Morte às Vassouras na Universidade de Oxford, King’s College London e Universidade de Glasgow. Segue com suas palestras por aí afora, é convidada para participar de vários projetos incríveis e não cessa de sonhar e ensinar. De uns tempos para cá, tem se interessado, também, por Física Quântica, o que, de acordo com ela, tem sido uma das engrenagens para seguir acreditando em seus sonhos. É essa força de pensamento que a levará, em outubro, para Barcelona. “Eu tenho um livro todo traduzido para o Espanhol. O que devo esperar? Não tenho dinheiro o suficiente ainda, mas já estou te falando: Brevemente irei apresentar em Barcelona.”
Cláudia soube superar barreiras sociais e literalmente “voar” em busca de seus sonhos. Soube fazer de seus momentos mais difíceis, degraus para chegar mais próxima a seus objetivos e, quando atingiu muitos deles, não contente em se ver cada vez mais feliz, fez questão de mostrar para outras pessoas que elas também podem ser felizes. Converse cerca de cinco minutos com ela e será o suficiente para você se lembrar que também é rico de alma e que, com essa riqueza, deve batalhar por seus sonhos e compartilhar com o mundo o que você tem de melhor.
Este tal desejo de “compartilhar riquezas”, de viver intensamente, de mergulhar em sua própria alma e nas almas dos que a rodeiam, traduzem Cláudia e movem cada uma de suas conquistas. E é com esse mesmo sentimento que fecho esse texto, o que apenas poderia ser cumprido, através de uma frase da própria autora:
“Creio que ser “Rica” trancada em quatro paredes, olhando pelo buraco da fechadura, com medo de gente de verdade, deve ser um sofrimento sem tamanho.
Por um mundo com mais equilíbrio!”