Tentar munir-me de um bisturi e atirar-me à carne das páginas deste livro (Como num naufrágio interior morremos) podia ser de um enorme risco. O risco de cruzar-me com outros (e que outros!) que já o fizeram com a mestria e radiância próprias de quem domina o ofício poético; e cito-os: Gonçalo M. Tavares, Jaime Rocha, Ronaldo Cagiano ou Ricardo Gil Soeiro. Coloquei-me então sobre a corda e decidi fazer-me ao abismo. Não será essa a função de quem escreve? E nesse interim, lembrei-me de uma frase do filósofo Byung-Shul Han que andava há muito a estremecer na minha cabeça, e que de certa forma fez com que abrisse caminho sob o motor que os versos de Alberto Pereira encerram: “Estamos demasiado mortos para viver e demasiado vivos para morrer”.
Então, dou por mim mergulhado num líquido em que as palavras não querem operar de acordo com os trâmites do conforto; pasmado do que passo a ver e instado a dilatar a minha lógica para que se conciliem as coisas que facilmente distinguia: a vida, a morte, o sonho, o estado, as leis, a repartição das finanças, os velhos hábitos, avareza de espírito, o dinheiro, a rotina, o amor, a infância. Uma panorâmica que se furta a normalidade das coisas ou a “piruetas formais”, como refere Ronaldo Cagiano no posfácio do livro. É a Primavera de Alberto Pereira. Sim, o momento travado na ignorância do tempo em que, rompendo-se o verniz de pedra, começamos a deitar flor, o jorro imparável dessa aguarela de trevas que é, em suma, a única instância no mundo. Palavras-espanto que penetram no interior do mundo, no nosso próprio naufrágio? E de onde o poeta tenta extrair o silêncio repondo o sentido às coisas, na procura também de uma nova linguagem, uma nova língua, descentralizada, contra a ideologia dominante ou “arrogante” como diria Roland Barthes. Na procura de uma linguagem convoca-se um pensar-sentir, a sensação aquém da psicologia individual numa clara tentativa de demolição do EU. Ou seja, o poeta diz a sua própria impotência e quanto mais essa impotência se torna evidente, mais o poema se torna nesse elemento insuperável e superior, uma musicalidade de significantes sonoros, uma força sensorial que é “ser” dentro desse mesmo naufrágio.
E, sobrevoando essa panorâmica pensante e viva que surpreendentemente topo comigo mesmo: na velhice, nas falas, nos nomes, nos empregos, nas desventuras, nas promessas de salvação, nos deuses, nos méritos. Passo a ver aquilo que de outra forma parecia invisível, não dizível, informe; o poeta “soletra-me” poeticamente tentando quem sabe ressuscitar-me com um abalo, um grito. E desse além, desse sepulcro bafejado por uma repentina Primavera, erguer-se para me impelir: a vida! A vida. E eu com a máscara já arrancada, afectado por esse abalo sísmico, sinto que algo já não é o mesmo. As palavras de Alberto irrompem como se fossem um animal antiquíssimo, faminto, onde se fareja o novo, o impossível, onde se estoura de afectos. Sim, é a lenta flecha da beleza que vai tomando conta de tudo, eliminando o EU, desenteriorizando e deixando também espaço ao outro, aos outros.
Largado num galope como numa súplica: “A vida do poeta é subir e descer nas palavras”¹ passo também a subir e a descer com o poeta, salto, corro para trás, danço, uma dança que entontece de espanto, de paradoxos, de fluxos de pensamento. A vida! E aí está quem sabe a grande verdade deste livro, tão livre de qualquer economia, tão livre num jogo sem coerção nem finalidade, a verdade colocada ao serviço da massa cega que nos atropelou e desistiu de nós mesmos.
1.Gaston Bachelard
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Texto lido na livraria Chan da Pólvora (Santiago de Compostela) na apresentação de “Como num naufrágio interior morremos” (Urutau, 2019) de Alberto Pereira.
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