O alarme do iPhone toca alto e ela para de ressonar. São seis da manhã. O lençol cola-se à perna da investigadora, deixando-lhe o peito à mostra. O quarto parece um altar. Reza alguns pais-nossos, com o despertador ainda ligado. O toque soa a uma espécie de acordes para órgão de tubos. Ao cabo de três minutos, a reza acaba. Agora, a generosidade do silêncio, não das palavras.
“Último dia do contrato de trabalho.”
O telemóvel no armário. A casa, os móveis, livros e as malas são o segundo mundo dela. O trabalho, o primeiro. O telemóvel toca e revela a mensagem de resposta ao bom dia. Era o namorado. Sorri, ao mesmo tempo que se senta na sanita para aliviar a bexiga. Demora, à vontade, um minuto. O assobio do autoclismo confunde-se com o do chuveiro. Ela aninha-se na banheira em porcelana azul. Mexe-se devagar devido à lesão da anca; lembra-se do tempo em que se lesionava nas aulas de ballet e de o professor dizer que apertasse os buraquinhos até ao umbigo. Pensa nos “bons velhos tempos”. A pele morena brilha entrecortada por três cortinas, que se enchem de uma espuma teimosa. Às vezes, o cabelo negro cola-se-lhe aos azulejos.
“Sabes que gosto de lavar a rata durante a cópula?”, pergunta a investigadora.
“Se faz favor…”, diz o namorado.
“Não te venhas abaixo. Vou só ali ao teu bidé.”
“Espero-te …”
“Habituei-me às pausas. Gosto de me lavar”, diz a investigadora rodando a maçaneta em forma de búzio.
“Já ouvi.”
“Renova. Um segundo.”
Este é um fragmento do conto “CONTRATO” de A Cor Azul (Editorial Novembro, 2021), obra composta por dois contos, “Tesouro” e “Contrato”.
Jaime Soares nasceu a 14 de Janeiro de 1987, em Vila Nova de Famalicão. É licenciado em Línguas, Literaturas e Culturas (Português/Inglês) e mestre em Estudos Anglo-Americanos (Literatura e Cultura), pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Em 2020, concluiu uma pós-graduação em Escrita de Ficção, pela Universidade Lusófona de Lisboa. Apresentou algumas comunicações em conferências no Porto, em Braga e em Boston (neste último caso, in absentia). A revista da Don DeLillo Society inclui um artigo da sua autoria intitulado “Don’t blame the players, blame the ‘system’: a systemic reading of Don DeLillo’s The Names” (2017). Por outro lado, em 2018, conquistou o Prémio Literário Germano Silva – Rotary Club de Penafiel com a obra A Cor Verde (Editorial Novembro, 2018). Em 2020, concluiu uma pós-graduação em escrita de ficção, pela Universidade Lusófona de Lisboa. Actualmente Jaime Soares trabalha na indústria têxtil e lê e escreve nas horas vagas.
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