Cheguei na quinta treze de fevereiro às Correntes d’Escritas da Póvoa de Varzim e fui feliz durante três dias. Agora aquilo semelha ter acontecido a vários universos de mim.
Não sei bem por que não escrevi nem uma breve crónica até este momento. Se calhar porque esta crise não supus algo de novo na minha vida, mas tão só um acréscimo da gravidade duma situação já adubada com demasiadas incertezas: uma doença familiar, a instabilidade laboral e várias turbulências nos afetos acompanhavam a roupa que eu trazia na mala. Porém, o país de além-Minho respondeu mais uma vez às jubilosas expetativas que já em criança albergava no meu íntimo cada vez que fazia campismo com os meus pais.
Arribei à Póvoa com a intenção de desfrutar dum dos melhores eventos literários da Europa em que, aliás, esperava encontrar-me com vários amigos, alguns deles pessoas que nunca antes tivera diante de mim: o escritor e advogado Ernesto Areias, de Chaves; o escritor e professor Carlos Quiroga, da Galiza; a escritora e jurista Hirondina Joshua, de Moçambique. Todos os três colaboradores da revista de artes e letras palavracomum.com, que dirijo junto com o escritor famalicense Tiago Alves Costa, amigo residente na Corunha como eu. Mas como Portugal sempre me recebe com uma fertilidade crescente, não me admirou que logo na tarde resultasse providencial a aparição dum outro colaborador da nossa revista digital, o escritor Jaime Rocha, e que já a cidade literária não deixasse de florir para mim. Eu cheguei como um turista anónimo e já ao início fui reconhecido como um irmão, escritor e galego talvez não por acaso. Imediatamente fui apresentado à diretora do evento, Manuela Ribeiro, que me convidou aos convívios na hora do jantar com todo o pessoal participante no Correntes, e assim foi que ainda pude abraçar amigos como o Aurelino Costa, advogado, escritor e rapsodista singular, o escritor angolano Lopito Feijóo, assim como conhecer outros grandes vultos da literatura portuguesa como Hélia Correia. Cumprimentei (e até comprei algum livro que se colou aos meus dedos), o João Rasteiro e o Paulo José Miranda, ambos os dous refenciados também na nossa revista). Porque havia muitos mais, de diferentes nacionalidades, que convocavam o público por centenas no Teatro Almeida Garret através de debates em que não faltava o génio, a crítica política nem o humor. Toda uma cidade, incluídos múltiplos apoios da empresa local, interessada na criação.
Lá fora, como pude ver nalgum descanso, o Atlântico batia com o estilo habitual, rendendo na areia uma homenagem ancestral a que os cidadãos estão afeitos mas na que algum visitante como eu ficava imerso, no lapso que me permitia ao meio-dia antes de voltar ao banho literário com tão inspirados talentos. Do hotelinho central gostei, da gastronomia portuguesa desfrutei e do trato delicioso dos amigos recentes fiquei grato para sempre. De retorno à casa soube da doença de Luís Sepúlveda quando alguns amigos me perguntaram por ele. Mas eu, entre tantos escritores, não tivera o privilégio de o conhecer. Em fim li que era muito querido no Correntes e que adorava Portugal, assim que com essa sensibilidade tem de merecer ser lido com atenção.
Não é fácil escrever sobre um evento em que tanta cordialidade vivi, e deve ser porque a seguir o mundo se converteu num bocado difícil de tragar, uma bola de pêlo emaranhado e áspero até ao paroxismo. Dizem que tudo em breve será distinto, e eu me pergunto de que modo e para quem. Distinto para mim sempre foi equivalente a interessante, mas agora, desde este confinamento físico temo por alguma classe de confinamento mental. Porque as baixas frequências dos discursos políticos que ouço a cada dia dão arrepio.
Hoje, ao lembrar-me daqueles lindos momentos no Correntes, digo para mim que prestarei mais atenção à respiração das árvores e ao canto dos passarinhos enquanto ir comprar o pão, autênticos presentes que, junto ao abraço das pessoas queridas e a fraternidade dos amantes da literatura, revelam agora seu autêntico valor. Talvez seja isso o que temos à frente para melhorar: tempo para tirar a limpo tudo o que de bom a vida nos dá.
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