Vivemos hoje em um momento sinistro. Uma pandemia surgiu em nossos horizontes e como consequência um isolamento entre os homens pulsou e ainda está pulsando, deixando marcas indeléveis em nosso cotidiano e em nosso porvir.
Isso é contrário à vida, pois esta se caracteriza por forças que estão sempre em contínua e rítmica movimentação, mas, no momento o isolamento social é a grande arma que temos para evitar que a saúde pública entre em colapso.
O que tudo isso tem a ver com a literatura e com a produção poética. A pandemia nos trouxe esta questão já vivida outrora por outras gerações,
A natureza profunda da condição humana é a união dos gametas com todos os seus desdobramentos para fazer acontecer o ser humano.
Neste ponto nodal começa toda a aventura humana.
Da concepção ao nascimento, muitos e muitos desdobramentos ocorrem. Destas etapas o devir humano se põe em marcha. Estas primevas auto-organizações deixarão marcas no ser humano.
Neste momento um paradoxo se produziu, pois marcas nos dão a ideia de fixidez e o que quero expressar aqui é que estas marcas em perene movimento carreiam heranças ancestrais. Portanto, a condição humana já contém a linguagem da natureza antes mesmo que a linguagem da cultura fosse capturada e,assim sendo, um outro patamar como seres humanos, alcançamos.
Esta estranha captura da linguagem cultural é feita quando o ser humano começa a falar com palavras. Porém, a natureza já possuía uma linguagem mais arcaica: a linguagem do código genético.
Quando se fala em zigoto, este nos traz o novo e a ancestralidade. Esta linguagem que é veiculada (biológica) se junta a outra linguagem e neste movimento aparecerá a cultura.
Nossa linguagem cultural é herdeira dessa outra muito mais arcaica que pulsa na natureza.
A linguagem do DNA, que contém quatro moléculas forma o seu “abecedário”. Adenina, citosina, guanina e timina, são moléculas que escrevem um livro biológico que contam histórias orgânicas de tempos imemoriais. Este livro da natureza tem um ponto de inflexão com aparecimento do ser humano.
Assim sendo esta linguagem que provém da natureza, e que é composta por moléculas “abecedários”, produzirá embriões, que, em um determinado tempo, produzirão um ser humano, falante. Cada criança que nascer terá o seu genoma, conjunto de seu código genético sempre diferente uma da outra. Cada criança é um novo livro que a natureza produzirá. Um livro de natureza genética e um livro que será escrito através de sua imersão na cultura.
Surge a linguagem humana. Surgirá a poética e no bojo desta a literatura.
O “abecedário” molecular sofre um grande desdobramento em algum momento da história do universo e este ACONTECIMENTO propiciará as condições para que a humanidade comece a pulsar no seio da vida. Uma mutação deve ter acontecido e deste “abecedário” molecular pulsa um desdobramento e surge um abecedário de letras que comporão sílabas, palavras parágrafos, páginas e livros. Livros estes com histórias e narrativas que constituirão nossa cultura.
O homem traz uma história ancestral molecular através de uma linguagem biológica-química e, também, uma história composta de palavras e parágrafos. A história da vida humana contém esta dupla articulação. Surge a linguagem humana propriamente dita. Isso foi possível em algum momento histórico. Hoje, este desdobramento fica encoberto pelas neblinas dos tempos.
Dobras e desdobramentos virão. Cabe ao homem ter a sabedoria de lidar com eles. Perigos existem, pandemias provindas de vírus primitivos com grandes potências destrutivas sempre serão uma ameaça para a nossa espécie. Os humanos com sua linguagem cultural possuem a capacidade de criar medicações e vacinas para superar estas dificuldades e também estas adversidades.
Não poderemos esquecer que os vírus são o início do “abecedário” biológico. Hoje, eles aparecem como ruídos destes primórdios. O homem explorando a natureza de forma intensa e desenfreada, sem ética e criando imensas desigualdades sociais permite que estes ruídos desta arcaica linguagem biológica, os vírus, apareçam e produzam avassaladores estragos na vida de muitos. Os mais bem dotados, imunologicamente falando, produzem anticorpos e conseguem combater o vírus por si mesmos, articulando as duas formas de linguagens e desta forma as epidemias passam, mas os danos que produzem são muitos, tanto para a saúde física quanto para a mental.
O preocupante é que a espécie humana, que possui pulsões de vida e de morte, lida mal com estas potencias que possui. Nossa espécie maltrata o planeta que é vivo e necessita de cuidados para que a vida possa nele vicejar. O que o homem ainda não percebeu é que sua espécie é frágil.
Estamos percebendo com esta pandemia, em que o recolhimento mundial de grande parte das populações se tornou necessário, tivemos como efeito a diminuição da poluição no mundo.
A literatura, e a poética que a habita, também precisam de um tempo lento, mais contemplativo, menos poluído para que possa ser produzida. Este é o tempo da pandemia, a literatura aprecia estes tempos, pois, poderá ser criada na dobra do instante onde caiba o infinito.
O que existe insiste.
Ver de novo o verde que jamais vi.
Em contrapartida tudo isto nos aponta para um mundo cada vez mais incerto e cabe a nós apostarmos que estes milhões de anos vividos pela humanidade e os bilhões de anos vividos pelos vírus possam ganhar melhores equilíbrios e isso garantiria novos desdobramentos para a vida no planeta.
Cabe à literatura ser potente para catalisar este processo, criando sonhos e novos mundos.
*
Alcimar Alves de Souza Lima, é Psiquiatra e psicanalista. Professor do Curso de Psicanálise do Instituto SEDES Sapientiae – São Paulo.
Texto lido na mesa nº 13 do Raias Poéticas, edição online.
Fotografía de capa de Alcimar Alves de Souza Lima.
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