Era uma vez um jovem que ansiava aprender a arte da transformação do metal em ouro. Foi então ter com um afamado alquimista da região e pediu-lhe para ser o seu discípulo, mas o mestre, depois de interrogá-lo acerca da sinceridade da sua intenção, pô-lo a trabalhar na oficina da forja das espadas. Aí devia permanecer um tempo –como lição inicial. Decorreu um ano, e o discípulo, ansioso, perguntou ao mestre quando é que começaria a aprender os segredos da elaboração do ouro, mas o mestre apenas lhe indicou que devia passar ainda mais tempo na forja das espadas. O jovem crescia e tornava-se dia a dia um forjador mais destro e, apesar de que de vez em quando tornava a perguntar ao alquimista pelo anelado início das aulas áureas, o mestre continuava a negar-lhe aquela lição.
Mas um dia, depois de já vários anos, em que o discípulo se encontrava a trabalhar numa belíssima espada, o velho mestre indicou que era chegado o momento de encetar a tarefa dourada: e o discípulo, quase sem retirar o olhar concentrado no gládio que nascia, disse ao mestre “deixa-me, por favor, ó mestre, agora estou ocupado a forjar esta espada”. Como esta história é a minha, contar-vo-la-ei: de outra maneira.
Com o título da dupla antologia de poesia publicada em 1984 e 1985, que encabeça este texto, queria aludir a uma constelação de poetas, não restrita aos membros daquele colectivo corunhês, cuja sensibilidade, cujo coração, a alguns de nós iniciou de certo modo a um mundo maior, no que diz respeito aos impactos procedentes da própria Galiza. Os posteriores poetas daquele fim de século, daquele fim do mundo, largamente imersos como estávamos na actividade criativa, na navegação às escuras que implica, no meu caso talvez desde que Celso Emílio Ferreiro enviou às mãos sua energia de palavras nocturnas, de longas noites, encetávamos a forja das espadas na época em que se publicava De Amor e Desamor. Por mim passara antes a palavra popular de Bernardino Graña, com a sua infantil e sublime imantação, que me ensinou a recitar em inglês aquele trecho inelutável do Hamlet, num bar da adolescência ferrolana, para embalar-nos logo com o miar do «gato da tasca marinheira»; talvez perto dos areais de Cangas, por onde caminhava a Maria Solinha, vítima da Inquisição que Celso Emílio ressuscitara.
Percorridos os caminhos para além do rio, do rio da desmemória, achada palavra comum, e conhecida –pelo acaso daquela exumação dos anos 80– a escrita desse senhor obscuro, volátil e certo, de máscara ou Pessoa retirada, intercambiável. E com este passeando por Lisboa até, surpreendentemente, os dias de hoje. Conhecemos alguns dos seus parceiros, nessa infindável partida de xadrez, alheia a tudo, omnicompreensiva: de olhos fechos fomos conduzidos aos lugares secretos do Álvaro de Campos, o Alberto Caeiro e ao mundo pagão do Ricardo Reis, aonde ficámos um tempo –um tempo que em mim permanece.
E como o tempo não existe, conhecemos ao seu tempo Manuel António e Guerra Junqueiro, sua Oração ao Pão; aqueles doces indóceis anarquistas.
Xosé Maria Álvarez Cáccamo, em Vigo, cercado pelas ondas e envolvido no atro crime de devolver a poesia do noroeste para o sagrado. E antes, o cantor de Cáli e Noia, que é como dizer da morte e a ressurreição, Antón Avilés de Taramancos, e o também ressuscitado, após morte pressentida, Eusébio Lorenzo Baleirón. Junto com eles, vagabundo reticente, Dom Ricardo Carvalho Calero, cavaleiro da triste desmemória.
E depois, por volta dos vinte anos, após uma breve viagem pela lírica de Ramos Rosa, de Ruy Belo, aparece um referente fulcral, sob o nome de Herberto Helder, mas com a substância que, para além da própria, se depreende dos seus heterónimos carnais: os poetas da antologia Edoy Lelia Doura –de indispensável navegação.
Vieram logo os poetas do interno, eterno Oriente, na sua insubornável «mesura». Por traduzir de alguma maneira o ideal adab, a verdadeira cortesia ou a íntima consideração, como já traduziram os nossos trovadores há mil anos, a quem aqueles poetas persas me levaram de regresso, agora talvez com pulso renovado. E escutei-os ao som daquela nova música antiga, ao som desse adab, que também significa literatura, como muadib –«aquele que é perito na boa vida»– significa literato. E como tarabi –trovador: que cai no tarab, no arrebato do amor, alheio a outra razão.
O ofício sonoro esforçadamente martelado, aquele anelo dourado, tornou-se indício do silêncio, frágua do anonimato. Agora fico por aqui, a relembrar a viagem de retorno. E deixo ainda a gratidão para todos aqueles que nos precederam na arte de tecer e destecer, com sombra e luz, como se o amor e o desamor só fossem uno.
[Este texto foi publicado no “9º Didascálico do IF-SC“, que será realizado em setembro de 2010 em Florianópolis. A temática deste ano será “Você vive sem a arte?”, a proporcionar uma reflexão sobre a importância da arte para o ser humano em seus diversos universos (individual, coletivo, cidadão, etc). O IF-SC coletou a visão brasileira sobre esse tema e pediram ao Instituto Cultural Brasil-Galiza para trazerem a visão dos galegos para a exposição. Tratava-se de as e os escritores galegos oferecerem as suas reflexões sobre o tema. Também publicado na Nova Águia]
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