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A PENSAR NO FUTURO
— E quando cresceres, o que é que queres ser?
— Uma criança, quererei ser outra vez uma criança.
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NUM FUTURO PRÓXIMO
— Que foi o que fez que te apaixonasses por mim? —perguntou ela.
Ele pensou um bocadinho, depois disse:
— Que não separas nunca sujeito e verbo com uma vírgula, que sabes construir a mesóclise, que não confundes “ss” com “ç” e que sabes colocar o hífen dos clíticos…
— A sério sou tão única?
— A sério… Nunca me sangram os olhos ao ler os teus textos.
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AGORA OU NUNCA
A voz da mãe ressoou na consciência do Felug para lhe dizer que aquele era o momento ideal para demonstrar aos abusadores que precisavam dele.
— Filhote, esse meteorito vai cair acima da cidade. Embora eles te tenham tratado como a merda, tu agora podes adicionar os teus conhecimentos aos deles para criarem juntos um escudo.
E assim seria nesses lindos contos em que se dá o perdão e o herói demonstra que tem um espírito generoso e empático. Assim o quereria a consciência encarnada na voz da mãe.
Porém, o Felug tinha aturado aqueles abusadores por vinte e cinco anos e aquela história não era um conto infantil.
Mas sim guardou um segredo, como nos contos infantis. Ele próprio era o causante de o meteorito se dirigir diretamente à cidade. Como? Isso apenas sabia ele. Felizmente era uma história que ninguém narraria, menos ainda para as crianças. Quem ia falar de um herói vingativo e masoquista? Quem?
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FICAR PARA O FUTURO
— Eu gostava de fazer a minha tese de doutoramento sobre si —disse ela ao grande autor.
Ele sentiu-se bem adulado. Por fim ia merecer que alguém estudasse a sua obra literária em profundidade. Mas aí interveio a voz do tutor da estudante que disse:
— Não dá. Para um autor poder ser estudado, ele tem de estar morto.
O autor sentiu raiva por aquele contratempo, mas foi uma coisa efémera, pois dois dias mais tarde, nos jornais, aparecia a notícia do seu falecimento em estranhas circunstâncias. Ninguém soube com certeza se se tratava de um suicídio promovido pelos egos do autor, ou se a estudante não queria mudar de tópico e, portanto, não estava pronta a esperar indefinidamente para escrever a sua tese de doutoramento.
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EGOPATIA
Ele coçava a têmpora enquanto pensava na palavra que acabava de escutar: egopatia. Concretamente disseram-lhe que era um egopata. Sem mudar a posição, procurava a palavra pela net, com a ajuda do seu telemóvel.
Depois de mais de meia hora, finalmente conseguiu encontrar o significado da palavra. Significa indivíduo sem qualquer empatia, com comportamento violento.
— Agora percebo —disse ele, mas sem qualquer emoção—. Portanto, é assim como me vês? Como um egopata?
Mas ela já não ouvia nada, tinha sofrido um infarto e tinha morrido logo. Não lhe tinha valido a pena o esforço de averiguar que o contrário de empático é egopático, uma palavra que ela tinha procurado tanto tempo, mas ele não concordava, não achava que ele fosse um egopata, era simplesmente coerente consigo próprio e, por isso, começou a discutir com o cadáver dela para ter, como sempre, a palavra derradeira.
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MASTURBAÇÃO
Durante toda a sua adolescência, cada vez que se masturbava pensava que algum deus o enxergava, porque os deuses veem tudo, mas também os mortos, os antepassados. O que pensariam, o que diriam eles? Seria castigado por isso? Mas nem o temor de ser espreitado vencia a sua necessidade de se masturbar.
Na idade adulta perdeu esses medos e masturbava-se tranquilamente, sem se importar se era ou não visto pelos seres do outro lado, pois não iam dizer nada. Só se importava que nenhum vizinho sabia o que ele fazia na sua intimidade. E estava muito ciente disso, portanto, naquele dia, saiu ao pátio da sua habitação e começou a se masturbar tranquilamente, enquanto o sol lhe banhava o rosto. Era uma sensação tão prazenteira que nem se apercebeu da erupção do Vesúvio. Uns segundos depois, ele estava todo coberto de lava, como o resto de Pompeia.
2000 anos mais tarde, o seu cadáver foi descoberto. E lá estava ele, a meio do processo de masturbação, à vista de todos, deuses, antepassados e visitantes, os últimos todos vivos e ridentes.
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