Há tempos que, por regra, não há debates de peso na intelectualidade do país. Será que a vida política, que balança do roubo nas arcas públicas ao messianismo mais superficial, produz um fastio paralisante nas plumas galegas. Mas existem, no entanto, exceções como o Xavier Alcalá, que vem livrando em solitário uma guerra pola dignidade do Centro Pen de Galicia, segundo as declarações que como aprendiz de outsider não deixo de seguir (cfr. “Centro Pen” no blogue O levantador de minas).
Nesta ocasião o professor Alcalá houvo de trazer para a mesa velhos argumentos para defender algo básico: não se pode falar em literatura galega —enquanto a língua galega ainda não desaparecer— sem assumir que a escolha linguística é uma marca de galeguidade incontornável. Assim, afirma que «[…] A literatura está por cima dos idiomas, aínda que os idiomas condicionen pensamentos e sentimentos. Nin en linguas tan próximas coma o galego e o castelán (galego oriental vasquizado e mozarabizado) se pensa ou se sente da mesma maneira. Digamos tamén, de partida, que non existe o multilingüismo senón a multiglosia. Concluamos que os multiglósicos poden ser equilibrados ou non, conscientes ou cargados de prexuízos. […] Negar grandeza universal a La familia de Pascual Duarte ou La colmena sería reflexo de cegueira. Mais é natural lamentar que Los pazos de Ulloa ou Los gozos y las sombras fosen escritos en castelán: o escritor débese á lingua de onde tirou a substancia literaria. Algún xenio con mala conciencia chegou ao límite de «inventar un barallete que facía crer aos que lían en castelán que estaban a ler en galego» (Guerra da Cal sobre o seu admirado Valle-Inclán). Algún escritor «de dereitas» (revise a historia o amigo Caneiro) coma Cunqueiro mantívose firme no galego cando as vacas sagradas lle recomendaban pasarse á lingua de Madrid (Piñeiro sobre o orixinal de Merlín e familia).» Com o Xavier Alcalá (cfr. “Idioma escollido”, La Voz de Galicia) podemos assumir que a arte escrita continuará a existir depois da morte do galego, dado que uma língua nunca morre sem passar a função comunicativa a outra, mas a língua traz implícito um modo de ver o mundo que se infere das suas específicas estruturas e sonoridades, dos seus modismos e da sua variedade semântica. E que afinal tudo sociolinguisticamente se mede segundo os preconceitos de quem faz juízo.
Para além disto, estimamos que previamente às escolhas linguísticas dos mais reconhecidos escritores existe uma realidade fulcral: o galego não era um idioma no século XX, desde que não se estudava como tal e portanto era considerado como sendo um falar de gente ignorante (se não porque esse abandono persistente da língua que nem as políticas “democráticas” dos últimos 30 anos conseguírom inverter?). Há sensibilidades artísticas que antepugérom a língua à carreira literária, e por isso escrevêrom em galego à vez que houvérom de construir uma língua literária e um mercado para as obras de tod@s. Outros, em troca, fugírom da marginalização e trabalhárom numa língua espanhola estabilizada formal, comercial e internacionalmente. São escolhas diferentes, que permitem refletir sobre a criação e o medo ou o compromisso com o franquismo.
Todos estes argumentos deviam é resultar desnecessários, se não fosse que outros precedentes parecem nos querer fazer retornar a um “falangismo” literário que críamos impossível de ressuscitar. Nesta linha, Luis Pousa lamenta a cultura galega não ir celebrar como merece «[…] el centenario de un escritor que, como Valle-Inclán, hizo del castrapo un maravilloso retablo de poesía y ritmos barrocos. Y que empapó tres de sus mejores títulos con la atmósfera y la lengua de Galicia […]». É dizer, que tivo o mérito de lhe ter dado uma mão de galeguidade à sua obra em castelhano para pesonalizá-la; contudo, inserir o “castrapo” na língua de Castela em nada dignifica a língua galega, pois vem sendo o mesmo que usar o “castrapo” a modo de dialeto castelhano.
Para Luis Pousa, no entanto, Cela não deixa de ser um «gallego hasta las cachas» (cfr. “Cela, gallego hasta las cachas”, La Voz de Galicia), o que me faz lembrar a inspirada distinção castelhana —que o de Íria Flávia conhecia bem— entre “honra” e “honestidade”, sendo a primeira relativa aos costumes “de cintura para arriba” e a segunda aos “de cintura para abajo”. Imagino, assim, que talvez o escritor nascido na Galiza não tivo que ser muito honrado com “a lingua de onde tirou a substancia literaria” e sim muito honesto, como teria feito com a mulher de um bom amigo para o não perder: melhor nem pensar em tocá-la. E isto faz-me lembrar alguma das suas celebradas pérolas de sabedoria: “Las cosas que se montan no se prestan: el caballo, la estilográfica y la esposa”; ou aquela que dizia “Las dos cosas más frías del mundo son el hocico del perro y el culo de la mujer” (acho que o li em Nuevas andanzas y desventuras del Lazarillo de Tormes).
Outra atitude que o Alcalá enfrenta é a de Xosé Carlos Caneiro, que oficia como um dos lanceiros do chefe de opinião de La Voz de Galicia. Ele acusa diretamente a intelectualidade progressista de impedir o reconhecimento de Cela como escritor galego: «[…] Si este fuese un país que en realidad tuviese en cuenta a sus genios, que son los que en verdad elevan el rango de las naciones, a ti [Camilo José Cela] te tratarían de otra manera. Hasta te han ocultado, algunos. Amedrentados ante la dictadura de lo políticamente correcto. No eres ni Lorca, ni Neruda, ni militaste en ninguna marea, a no ser la de la literatura alta. Eras de derechas, como Cunqueiro. He aquí tu pecado. Por eso ayer alguna de esas ratas que pululan en las redes sociales te despreciaba. […] Qué país de cobardes, Galicia […].» Aqui a cousa é clara: Cela deve ser reconhecido porque com a sua escrita “eleva o rango da nação”, mas de qual nação está a falar Caneiro? Da galega não deve ser, é evidente, porque esta “elevação” não pode ser feita escrevendo em espanhol; portanto fica claro que o nacionalismo espanholeiro de Caneiro explica as necessidades políticas dos seus tresloucados argumentos (cfr. “Cien años y un día, CJC”, La Voz de Galicia). Por outro lado, estima que a valorização da obra de Lorca ou de Neruda só devém da “ditadura” imposta polas tendências críticas progressistas da época democrática, dando a entender que socioliterariamente é mesmo pior a época atual que aqueles quarenta anos em que floresceram à vontade os abusos e os crimes franquistas. Como se a maré negra da ditadura fosse comparável com qualquer aspeto discutível desta feble democracia que nos vimos obrigados a herdar dos militares, os aristocratas e os sacerdotes de Franco.
Mas a cousa fica ainda mais clara noutra ocasião, quando diz (cfr. “A galeguidade rotunda de Camilo José Cela”, La Voz de Galicia): «Non serei eu quen sitúe nin inclúa a obra de Cela no territorio empírico da literatura galega. Obviamente, a súa obra pertence ao ámbito da literatura española ou castelá. Porén, e con maior fervor neste centenario do noso Nobel, reitérome en citalo con vehemencia como un dos maiores referentes universais da cultura galega. Probablemente, con Rosalía, o principal. Desculpen a miña heterodoxia. E admitamos que calquera discrepancia coa doutrina cultural galega, nacionalista e de esquerdas, significa a laminación como escritor. […] Cela é galego; a súa obra, excelsa e ilustre, está enraizada no humus cultural galego […].» Então é que chegamos a saber qual a tese principal: a cultura que para a Galiza interessa é um território sem língua própria. Porque só desse modo poderia ser-se um “excelso” escritor galego que não usasse a língua da Galiza, não é? Como também um eucalipto ou uma acácia, se plantados numa terra galega em que carvalhos, castanheiros e tal fossem erradicados, passariam a ser árvores autóctones.
Lembro quando trabalhava eu para o CGAC como tradutor freelancer e numa ocasião tivem que traduzir do castelhano um texto de Cela. Isso era para ele o galego: algo não assinável, embora fosse um falar riquinho com que enfeitar as personagens e provê-las de maior verosimilhança. Mas a cousa não passa de aí, senhores defensores de galeguidades “de cintura para abajo”, e estas evidências nada restam nem acrescentam à qualidade literária do nobel espanhol. O que resulta estranho é que os protestos que vocês publicam só tenham sentido se o galego deixasse de existir, como se uma contradição fulcral no seu íntimo desaparecesse necessariamente com a morte da nossa língua ancestral.
{Publicado no Sermos Galiza}
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