Nós, os da cidade, nos confrontamos diariamente com as palavras de tantos homens doidos. Hoje cada vez mais, como colocou de forma presciente Roland Barthes, a linguagem é campo para um imenso conflito entre paranoias, aquilo que Freud dizia ser a incapacidade de lidarmos com a ambiguidade. Parece que pensar hoje é mesmo estar doente dos olhos. Nem a ciência apazigua esta crise. Mesmo os mais lúcidos cientistas, como Stephen Hawking e Richard Feynman, afirmavam que podiam explicar algumas leis da física mas não compreendiam a natureza na totalidade. Mediante tamanha incerteza, ressurgem as velhas certezas com suas palavras de ordem.
Se a palavra está em crise, o poeta, ainda que fingidor, consola-nos, e o faz pela palavra. Uma palavra que não busca o fato, a versão, a prova, a refutação, a hipótese, a interpretação; resgata o que temos em palavra comum com os demais seres vivos, o sensível, a emoção. “E tudo o que se sente diretamente traz palavras suas.”
Apollinaire escreveu que a natureza é uma fonte da qual podemos beber sem medo de nos envenenarmos. O verso que evoca o natural é também puro; desta palavra podemos beber. Caeiro não busca purificar a linguagem da tribo com a palavra rarefeita e mística, e sim nos guiar ao seu reencantamento através de uma conexão com o vivo.
T. S. Eliot afirmava que nossas vidas resumem-se sobretudo a uma evasão consciente do mundo visível e sensível. Caeiro, arauto do sensível que aflorou em Fernando Pessoa, resgata-nos desta evasão, ao dar renovado ânimo ao pacto que fizemos ancestralmente com o vivo, quando o reverenciávamos em rituais animados pela palavra, e que a poesia, fragmento desta prática, tenta preservar. Não percamos esperança na palavra, quando ainda temos poetas e escritores que, de uma maneira ou de outra, fazem da poesia de Caeiro fonte pura de alento para suportar e combater as tantas fontes envenenadas que nos flagelam.
Mauricio Vieira é jardineiro de palavras. Edita a revista Arvoressências
Foto do autor por Ozias Filho.
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