No mundo nada tem feito tanto pela uniformidade linguística como a televisão. Sem dúvida que o rádio já apoiara o processo, sobretudo as “cadeias nacionais”. Mas a televisão foi o instrumento decisivo, pois faria com que as famílias se parassem embobadas diante do novo bezerro de ouro.
Acerca disso, permitam-me reclamar a sua atenção a um texto meu, uma fabulação, que teve sucesso (e mesmo prémio) no seu dia, quando na Galiza ainda nem sonhávamos com uma “rádio autonómica”, nem muitíssimo menos com uma televisão do Impaís. Naquele conto, titulado O Larvisión, fala-se dum país, Além-Montes, dominado pela Centrália, que introduz a presença contínua do idioma centralês nos lares alenmonteses graças a um sistema holográfico de tele-difusão.
Muito tempo atrás (quem escreve lembra bem acontecimentos de há sessenta anos), quando os veraneantes madrilenos (centraleses) na Galiza (Além-Montes) ouviam falar os indígenas em castelhano, chegavam a exclamar “Parecen extranjeros!”. Porque, simplesmente, até a aparição da televisão na Galiza (aos começos dos anos 60 do passado século), a gente conservava a fonética e a prosódia do idioma patrimonial.
E muito mais. Mesmo poderíamos dizer que se falava um “espanholego” cheio de termos do património próprio e de custosa tradução. Como exemplos a voo de tecla valham “nacida”, “piola”, cativo”, “corredoira”, “robaliza”, “cachelo”, “billarda”, “careixón”…
Hoje, logo de trinta anos de Televisión de Galicia (e ainda mais anos de Radio Galega), mesmo com estes instrumentos ativos teoricamente a favor do galego, a pressão dos média espanhois é tal que o “galespanhol” se impõe na Galiza.
Não há muito que um colega irlandês, interessado nas línguas minoradas da Europa, me confessava que ele anda a detectar falas ou substratos delas por como lhe soa “a música dos falantes”; e que nos últimos tempos (ele visita-nos com frequência) observa como “na Galiza já não se ouve galego, nem na boca de gente que acredita falá-lo”.
O atento irlandês refere-se ao fenómeno do “neocastrapo”. Para ele, os galegos que falavam castrapo –o patois cheio de aproximações aos termos da “língua A” no sistema diglóssico– faziam-no em galego –língua B– pois, no fundo, as falas são cadeias de sons. As línguas soam, e há umas décadas na Galiza havia um extenso rumor galaico.
Ora, quem hoje ouça falar o Presidente da Junta da Galiza ou o seu ministro da Economia, sentir-se-á confundido, pois o discurso desses senhores soa a madrileno. Feijó e Conde dão mostra paradigmática do fenómeno linguístico: sendo galegos, de zona de fala natural enxebre no coração da Galiza, anos de permanência em Madrid mudaram-lhes os mecanismos da articulação da fala.
E a isso há de se acrescentar um segundo fenómeno (com licença dos filólogos pelo atrevimento). Ele é o da “correção da memória”, para o que vou fazer o símil da lógica negativa versus positiva da que falamos os telemáticos: onde há um 0, vá logo o 1; onde ia o 1, passe a haver o 0.
Vejamo-lo com exemplos:
Em fala espanholega conservavam-se as formas “estes” e “eses” frente às irregularidades castelhanas de “estos” e “esos”. Na nova lógica (do absurdo), os falantes de galespanhol ou neocastrapo dizem “estos” e “esos” no lugar de “estes” e “eses”, corrigindo assim o “recordo do mal dito”.
Os espanholego-falantes mantinham as formas “dea/n” e “estea/n” de dar e estar frente a “dé/n” e “esté/n” de verbos plenamente coincidentes como os do castelhano. Agora o neocastrapismo leva os galespanhol-falantes a pronunciarem “dé/n” e “esté/n”.
Se antes em espanholego não se pronominalizavam muitos verbos, e dizia-se “eses comieron y bebieron todo”, agora em galespanhol escutam-se horrores como “esos se baixaron o programa”. De histórica pode-se qualificar a asneira do ministério galego das pescas e o seu “Cómete o mar” (Cómete el mar). Custou-lhe uma fortuna retirar cartazes e anúncios de jornal pois os galego-pensantes percebiam o contrário de quanto se desejava promover: comermos o mar (peixe, marisco e algas). A gente pensava que o mar a comia, o qual é cruel lembrança no Impaís da Costa da Morte.
Nem em galaico-português nem em francês aparece preposição “a” (à em francês) depois de verbos de movimento, ao contrário do que ocorre com o castelhano. Frases comuns em espanholego eram “voy marchar para Coruña” ou “vengo traer el dinero”. Isso castigava-se na escola (grande castelhanizadora), de maneira que a lógica negativa já instalou o “a” mesmo nas frases dos locutores da CRTVG: os políticos dizem sem parar “Vou a facer unha proposta” e os locutores “Imos a deitar-nos”.
Por não seguirmos até ao cansaço na apresentação do desastre, finalizemos com o caso do cómodo tempo verbal mais-que-perfeito galego. Ele ajudou a que se aceitasse “Cuando llegué, él ya marchara” frente a “Cuando llegué, él ya se había marchado”. Essa era grave falta para correctores da “Lengua del Imperio”, punia-se; pelo que no desnorteio dos neocastrapistas aparece como conveniente dizer “Os orzamentos xa se habían negociado”…
Bem. Mais uma vez, nestas páginas acolhedoras de Palavra comum atrevi-me a chamar a atenção dos estudosos da dinâmica das línguas sobre o que venho a observar desde há anos. Mesmo atrever-me-ia a fazer um “dicionário de neocastrapo”… Mas vamos logo deixar tal trabalho para filólogos, e permitam-me os pacientes leitores uma sugestão:
Que tanto os professores como os locutores cumpram com o seu dever. Certamente que a pressão do castelhano é esmagadora, mas se a gente for consciente do que soa bem ou mal em cada idioma, não haveria lógica dupla, positiva e negativa: zeros sempre seriam 0s e uns sempre ficariam como 1s, com independência do idioma.
Não sei se gostaram do símil, porém pouco mais se lhe pode exigir a um intruso nestes assuntos das linguagens humanas (quando o próprio da sua formação académica são as linguagens de máquina).
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