Valério Romão por Tiago Figueiredo
«Como um desastre que se ultrapassa na estrada (…) existe mais longamente no retrovisor (…) cuido que terá sido sempre assim com toda a gente (…) um dia estás a chinelar na praia atento à queda dos impérios e no seguinte (…) um avêcê (…) um relicário ao passado (…) um dente do siso a crescer ao contrário (…) sei disso quando no café me tratam por senhor (…)»
Assim começa Mais uma desilusão, o primeiro livro de poemas de Valério Romão. Na verdade, é apenas um poema, mas que se estende por 62 páginas. Este incipit (abertura de uma obra literária) dá o tom daquilo que está por vir: uma retrospetiva, no caso, autobiográfica, como é habitual nas obras do autor.
A descrição do tempo ao longo deste longo poema lembra a concepção de Tempo de Henri Bergson. Para o filósofo francês, o Tempo, tal como o vivemos, é uma experiência fluida e qualitativa, que não se pode dividir em partes ou medir objetivamente. Trata-se de um tempo interior, o tempo da consciência, onde os momentos não se sucedem rigidamente, mas interpenetram-se, formando um fluxo contínuo. É essa a narrativa poética que o poeta nos conduz, página após página.
A estrutura é fragmentária, rejeitando a clássica perspetiva mecanicista do Tempo, na qual a lei da causalidade reina absoluta. Esta subversão do tempo cronológico está anunciada logo nas primeiras linhas, onde saltamos da “estrada” para a “praia” e, depois, para o “café”. Este encadeamento flui sem amarras, como se nos fosse entregue diretamente da mente do autor.
Quanto à forma, Valério Romão rompe com a quebra de linha convencional entre os versos, espaçando-os na horizontal – uma escolha estilística que preserva o ritmo e a melodia. Na citação inicial, substituí as pausas pelos parênteses e reticências “(…)”, mas no original, o fluxo de leitura é ainda mais acelerado. Tudo parece conspirar para uma experiência íntima e espontânea: ausência de maiúsculas, expressões idiomáticas, tiques de linguagem e automatismos verbais. A sua poesia aproxima-se do pensamento contínuo e caótico, tão próximo do real.
«Cuidado amigos que vem aí o homem branco mais a sua sarda (…) heterossexual em podendo (…) cada vez menos coitado (…) nem no Tinder safa coitado (…) que ele é mais perigoso na barba (…) e a coçar a testosterona que lhe cai no regaço (…) cuidado que ele não conhece esta versão do futuro (…) postulando direitos em sopa de letras (…)»
O poema é autobiográfico. E, se toda poesia é autobiográfica, direta ou indiretamente, aqui o poeta assume o confessionalismo de forma aberta. Este estilo aproxima a poesia do documento sociológico ou psicológico, explorando uma experiência simultaneamente pessoal e coletiva. Alternando entre crítica social e autocrítica, reflexão apaixonada e ironia gélida, Valério constrói uma dissertação imparável sobre infância, juventude, migração, wokismo, alterações climáticas e tantos outros temas, que se encadeiam num fluxo contínuo. O estilo é cativante, cúmplice – especialmente para quem compartilhou vivências semelhantes –, arrancando gargalhadas mesmo quando nos deparamos com verdades amargas.
Ainda que num registo diferente, encontram-se ecos da célebre canção do “FMI” de José Mário Branco. Em “Mais uma desilusão”, verso a verso, vive-se uma odisseia pessoal delimitada por um redil sociológico. O poema, contudo, não procura abarcar o coletivo amplo, mas sim uma vivência grupal, quase tribal, marcada por uma visão que não abdica da sua masculinidade, classe social e padrões de vida.
«Uns lavores inúteis sobre o cocuruto das televisões antigas (…) diante de cujas barrigas luminosas (…) brotavam crianças de dedos e baba (…) entretidos naqueles magníficos anos 70 de perna ao léu (…) com os astronautas a preto e branco a chafurdar no umbigo da lua»
Valério Romão é uma presença incontornável da nossa cultura. A força dos seus versos reside no desconforto com os padrões, na rebeldia contra os cânones e na recusa da paz solene da neo-poesia pastoral. Nos seus poemas, há raiva, vernáculo e a intensidade de uma carga de infantaria em plena batalha.
«(…) uma Joana Vasconcelos por cima de cada porta (…) a sorrir toda turbinada (…) compota de rosa mota para barrar as torradas e em cada parede um saramago (…) feito com o melhor martelo pneumático (…) às quintas-feiras toda a gente se veste de Amália (…) às sextas de Cristiano Ronaldo (…) uma lixívia com cheiro a Manuel Alegre (…) depois de três garrafas de pêra manca para lavar os aviões da TAP (…) e à entrada das autoestradas (…) um jardim zoológico só com linces ibéricos (…) a comer papel Renova (…)»
Com humor, crítica e uma voz única, Valério Romão entrega-nos não apenas mais uma obra, mas um testemunho do tempo que vivemos – um espelho, um retrovisor, e um relicário.
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Luís Palma Gomes
Nascido em 1967 em Lisboa, Luís Palma Gomes começou o percurso da vida nas margens da capital em Queluz. Engenheiro informático de formação académica, deu os primeiros passos na literatura durante a década de 90, no antigo projecto “DN Jovem”, um suplemento semanal do jornal “Diário de Notícias” que reunia e publicava jovens poetas.
Autor de duas peças de teatro já publicadas A Moura e O Último Castro Antes de Roma, dois textos que interligam a história e cultura portuguesa com narrativas humanas e conflitos intemporais.
Em 2022 publicou o seu primeiro livro de poesia: Fronteira. Depois de vários anos ligado à actividade seguradora decidiu enveredar pelo ensino, leccionando actualmente Informática no Ensino Secundário.
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