Ser cidadão significa sobretudo essa capacidade e acção de lutar a favor da racionalização da dominação, limitando-a.
(Filimone Meigos, Ensaio Sobre a Mentira e a Inveja & Outras Coisas)
Introdução
Filimone Meigos, poeta, sociólogo e outras coisas moçambicanas, um iconoclasta radical e definitivo ou, por outra, um “chingondo de todas as raças”, nascido em 1960, é autor de várias obras: Poema & Kalachi In Love (1994), Globatinol – Antídoto – ou Garimpeiro do Tempo (2002), Moçambique, Meu Corpus Quantum (2009).
A poética de Filimone Meigos não ilude o profano e a paródia, “como acontece a muitos poetas “neo-barrocos” lida com a sintaxe abrupta, deslocamento, e uma forma não sistemática que pode ser encontrada, mutatis mutandis, na poesia de Olson e Zukofsky, José Lezama Lima, Gabriela Mistral, Eduardo Carranza, Salvador Novo, Octavio Paz, Nicanor Parra, Ernesto Cardenal, Heberto Padilla, Eliseo Diego e Gonzalo Rojas (grifo meu). O espaço do poeta neobarroco é rachado em lascas. Ele tem, é claro, sua própria lógica, uma lógica que inclui, e às vezes prefere, o ilógico, da mesma forma que um ateu inclui Deus nos seus pensamentos.” (José Kozer: O Neobarroco: Um Convergente Na Poesia Latino-Americana).
A poeta e crítica literária Ana Mafalda Leite no seu ensaio Filimone Meigos, A Poesia como Prática Profanatória e como Arte da Paródia, bem destacou a presença dessa preocupação clássica, de formação de carácter estético, desde o gaguejar da língua/ linguagem poética, ao deslocamento extremo, esticando a linguagem ao máximo, todos os tipos de linguagem, participando alegremente nas liberdades do barroco: sua escrita não é engrenada para a luxúria mas, na melhor das hipóteses, para a luxúria como adoração; cada um e todos eles, mais do que Poeta, é uma configuração de muitas vozes, polifónica, coral.
Afirma ela, “Na poesia de Filimone a modernidade é uma espécie de zapping entre vários tempos e culturas que se cruzam, enquadrando-se nas suas diferencialidades e questionando identidades.
[…] Ora o discurso de Filimone Meigos é provocatoriamente profanatório ao deslocar para um novo uso, sentidos consagrados de diferentes linguagens. A criação de um novo uso, através do seu deslocamento e desadequação é pois unicamente possível para o artista ao desactivar um velho uso, tornando-o inoperacional. O poeta ao jogar com as diferentes linguagens, retirando-lhes a sua função instrumental – académica, filosófica, antropológica, política, poética- e retirando-as dos seus contextos próprios, deixando-as emancipadas dos seus objectivos comunicativos imediatos, vai permitir a essas linguagens uma nova arrumação, que as disponibiliza para o questionamento e para a crítica, permitidas através da profanação dos seus lugares, consagrados disciplinarmente: [..]” (Revista Ecos vol. 17, Ano XI, n° 02-2014).
Em Ensaio Sobre a Mentira E A Inveja & Outras Coisas, Meigos traz-nos um “documento sociológico explosivo”, com questões ontológicas “em permanente desafio aos poderes instituídos” (F. Noa), no essencial a cogitação sistemática sobre a inveja e a mentira e os ensaios sobre outras coisas, já abriga, além da atracção ideológica que se insinua, traduz uma experiência sociológica, pedagógica, filosófica e poética. Significa reformular um tempo repleto de confissões mesmo nutridas de ironia (sendo esta “uma tentativa de discurso do caso moçambicano”, tal como nos assegura o autor no ensaio que dá estampa ao livro), significa (re)construir o sociólogo enquanto ser histórico, responsável também por aprofundar os significados quotidianos (seja de forma existencial ou literal) aqui reunidos, longe um do outro em termos cronológicos (2003-2015), oscilam no compasso da transitoriedade e da permanência.
“O discurso de Filimone é um questionamento onírico da contemporaneidade e da ancestralidade, uma meditação dramatizada, crítica, e encenada, do des(conhecimento) dos diferentes poderes, locais, sociais, políticos, imperiais, globais.” ( Ana Mafalda Leite).
É verdade que Meigos no seu discurso, que se pretende transparente, “ (…) ilustra, nos seus diversos textos, como dar conta do stinker (emoção) a partir de uma perspectiva do thinker (da razão)”, escreve Carlos Bavo no prefácio.
A Questão da Inveja e da Mentira no interior de Meigos
O rancor é cruel e a fúria é destruidora, mas quem consegue suportar a inveja?
Provérbios 27:4
Parece inegável que a questão da inveja tem, vários vasos comunicantes, a começar pela sua dimensão hospedeira da informação e a fechar pela sua conjuntura plural de ruídos intermináveis, seja na óptica do “contrato social”, em geral, ou do matrimónio cultural e linguístico, em particular, a inveja decorre nos meandros sociais, na medida em que evidencia o fulanismo e o etecetrismo, contendo os nomes, os afazeres e os lugares como fieis referências desta experiência muitas vezes amarga. “Isso se torna mais explícito quando o sujeito percebe que a sociedade contemporânea já não corresponde a um edifício ideal sustentado pelos interesses comuns, e que os indivíduos se entendem, cada vez mais, a partir dos embates entre as suas próprias máscaras. Porém, embora a contemporaneidade assista ao aguçamento dessa percepção agónica do mundo, não é de se desconsiderar o empenho do sujeito para superar os estados caóticos, seja tecendo mitos restauradores de uma condição humana ideal, seja reconhecendo nesses estados caóticos algo inerente às distintas ordens sociais.” (Edimilson de Almeida Pereira: Bispo do Rosário e Jean-Michel Basquiat)
Assim, Kierkegaard, no seu livro O Desespero Humano, define a inveja como “uma admiração que se dissimula. O admirador que sente a impossibilidade de ser feliz, cedendo à sua admiração, toma o partido de invejar. Usa então de uma linguagem diferente, segundo a qual o que no fundo admira, deixa de ter importância, não é mais do que patetice insípida, extravagância. A admiração é um abandono de nós próprios penetrados de felicidade, a inveja é uma reivindicação infeliz do eu”.
É na história primitiva que podemos encontrar no velho Testamento da Bíblia Sagrada e mais directamente no relato de Caim e Abel, em Génesis 4. Nas escrituras bíblicas, Caim é o primeiro homem nascido. É recebido por Eva como dom de Deus. É à Sua benevolência que a primeira mulher deve a maternidade. É a primeira experiência de maternidade no mundo, o que vem modificar a condição feminina tornando-a, mais do que serva e companheira de um marido, capaz de ser mãe dos seres humanos:
1- Adão teve relações com Eva, a sua mulher, e ela ficou grávida. Eva deu à luz um filho e disse: – Com a ajuda de Deus, o SENHOR, tive um filho homem. E ela pôs nele o nome de Caim.
2- Depois teve outro filho, chamado Abel, irmão de Caim. Abel era pastor de ovelhas, e Caim era agricultor.
3- O tempo passou. Um dia Caim pegou alguns produtos da terra e os ofereceu a Deus, o SENHOR.
4- Abel, por sua vez, pegou o primeiro carneirinho nascido no seu rebanho, matou-o e ofereceu as melhores partes ao SENHOR. O SENHOR ficou contente com Abel e com a sua oferta.
5- Mas rejeitou Caim e a sua oferta. Caim ficou furioso e fechou a cara.
6- Aí Caim disse a Abel, o seu irmão: – Vamos até o campo. Quando os dois estavam no campo, Caim atacou Abel, o seu irmão, e o matou. (Génesis 4:1-8)
Por sua vez, o escritor português José Saramago, prémio Nobel de Literatura (1998). Em algumas das suas obras, o foco é o questionamento das verdades bíblicas. Sua obra mais conhecida é o Evangelho segundo Jesus Cristo, cujo personagem principal, o próprio Jesus, é retirado de sua posição de Deus e é retratado como um ser humano comum, com os desejos e comportamentos dos homens de sua época. O herói é dessacralizado, e se torna um homem mais próximo de nós.
Em Caim (2009), esse processo não é diferente. Tal como nos habituou, com uma dose irónica e o seu desamor com o cristianismo plenamente assumido, Saramago revisita o mito bíblico acima citado, presente no livro do Génesis, história esta que conta a vida de um personagem que assassinou o próprio irmão, porque este teve sua oferta aceita por Deus, e, em consequência de seu acto homicida, foi obrigado a viver errante pelo mundo. Caim é tido como um invejoso inveterado, e por conta desta atitude “desautoriza a voz soberana e absoluta da voz bíblica, ou seja, a voz de Deus. Então, a narrativa é, sobretudo, uma crítica ao poder.” (Paula Karina Verago Petersen).
Apesar de assassino, caim é um homem intrinsecamente honesto, os dissolutos dias vividos em contubérnio com lilith, ainda que censuráveis do ponto de vista dos preconceitos burgueses, não foram bastantes para perverter o seu inato sentido moral da existência, haja vista o corajoso enfrentamento que tem mantido com deus, embora, forçoso é dizê-lo, o senhor nem de tal se tenha apercebido até hoje, salvo se se recorda a discussão que ambos travaram diante do cadáver ainda quente de abel. (SARAMAGO, 2009, p. 119).
Neste contexto de leituras comparadas, diria que, no caso da inveja e da mentira aqui denunciadas, Meigos constitui a sua posição sobre a Inveja e a Mentira, defendendo-a com referências explícitas socorrendo-se aos “mecanismos daquilo a que os sociólogos chamam de preconceito e de teoria da rotulação” (Filimone Meigos) e aquilo que Max Weber chamou de “A consideração científica constitutiva de tipos indaga e expõe, muito de relance, todas as conexões significativas irracionais, afectivamente condicionadas, do comportamento que influenciam o agir enquanto “desvios” de um seu decurso construído como puramente racional e teológico.”
É interessante pensar que Meigos apresentou este texto, em 2007, no ISCTEM, onde era director da Escola Superior de Ciências Sociais, nesse tempo havia muitos celeumas sobre o lugar que ele ocupava, coisas de mentira e inveja sugeriram o autor a reflectir sociologicamente sobre este fenómeno.
Sobre a mentira e a inveja afirma o sociólogo “parece-me que a mentira e a inveja, sua irmã siamesa, são mais dois de entre os vários “sapatos sujos” que nós moçambicanos temos que descalçar, se não quisermos acumular mais chulé da nossa pobreza espiritual.”
Na opinião de Meigos, a mentira ocorre nos rapports sociaux (relações sociais) diários. Ela pode ocorrer na dimensão do senso comum, da religião, da filosofia, da arte ou mesmo da ciência, essa, outra crença em que todos confiamos e supomos virgem e imaculada.
O sociólogo traz à tona o conflito de interesses, os preconceitos, as divisões ideológicas nas relações sociais, ele traz uma ampla visão acerca do assunto, que não se limita na dicotomia mentira e inveja, cartão de visita dos dias que correm, alastra o debate para questões ligadas a ambição e busca do poder a todo custo, e muitas das vezes recorrendo-se ao […] “ diz-se que”, .. “ouvi dizer”… “ porque o vi” . “Desta óptica o senso comum acaba sendo o veículo do rumor que se torna objecto de uma sociologia especial, a sociologia do rumor.”
E por fim Meigos mostra-nos que a forma de combater a mentira e a inveja “é descalçar os sapatos e limpar na expressão de Elísio Macamo, as nossas más maneiras”, o sociólogo deixa um aviso a navegação aos mentirosos e invejosos: “É de crer que o mau tempo passará um dia e, consequentemente, os tsunamis das nossas más maneiras se dissipem.”
REFERÊNCIAS
LEITE, Ana Mafalda, Filimone Meigos, A Poesia como Prática Profanatória e como Arte da Paródia, Revista Ecos Vol. 17, Ano XI, N° 02-2014.
KIERKEGAARD, Soren. O Desespero Humano, São Paulo, Editora Unesp, 2010.
KOZER, José. O Neobarroco: Um Convergente na Poesia Latino-Americana, Tradução: Virna Teixeira, Abril de 2004.
NOA, Francisco. Perto do Fragmento, a Totalidade, Maputo, Ndjira, 2014.
MEIGOS, Filimone, Ensaio Sobre a Mentira e a Inveja & Outras Coisas, Maputo, Lithangu, 2015
SARAMAGO, José. Caim, Companhia das Letras, 2009.
PEREIRA, Edimilson de Almeida: Bispo do Rosário e Jean-Michel Basquiat.
PETERSEN Paula Karina Verago, O Narrador Errante e Paródico em Caim, de José Saramago, REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 7, Número 11 – TEMÁTICO Questões de Narratividade ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2015.
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