– Palavra Comum: Que é para ti a música?
– Dúbi Baamonde: A música é em primeiro lugar comunicação. Acompanha ao homem na sua vida desde que nasce com um axóuxere ou um canto de berce, até que morre com os sinos da igreja ou as pranteiras que o despedem. Serve portanto para comunicar a pena duma morte, mas também a alegria dum neno que nasce. Acredito na música para cantar, para bailar, para acompanhar um labor; ou para compartilhar com qualquer outra atividade humana ou artística.
Em segundo lugar, quanto ao processo musical em si, a música é por um lado pulso vital, ritmo; e por outro melodia, ouvido, altura de sons. Ouvir a um mesmo, mas também aos outros, escuitar… a música é som mas também silêncio. É um lenço de silêncio pintado. Um músico que não cala não respira e não ouve. Tão importante é, portanto, tocar, como calar, respirar e escuitar.
Por último, para mim a música é transe desde as suas origens, é magia, é orar uma prece ou um rezo que me comunica como indivíduo com a natureza. É escuitar “A love supreme” de John Coltrane, ou tocar numa capela ou frente a um acantilado ou falésia que passa a fazer parte de ti, como caixa ressoadora. A música vibra e muda o espírito. A música nos transforma. Os tambores encirravam os guerreiros nas guerras para entregarem a sua vida nos combates.
O quê não é música?
O mero processo técnico. A expressão supeditada à mecanografia. Estudar repetindo, repetindo, repetindo… os patterns. Para mim isto é fossilizar a música: patterns, rudimentos, trinos, semitrinos. Isto matou em muitos aspectos a música clássica e está a matar o jazz ou a música tradicional galega em outros. Para alguns todo está medido tecnicamente, mesmo a expressão é inatural. O músico sempre no pedestal do palco, longe do público que poucas vezes participa excepto para admirar o virtuosismo. Competir e não compartir. A mim, em verdade, emociona-me mais um gaiteiro tradicional do que um gaiteiro actual; ou numa jam session ouvir a um músico que faz um acompanhamento elegante, ou que responde ou dialoga com outro; porque isso significa que está a ouvir, que está a partilhar, que compreende a música como um processo comunicativo.
Tanto na música clássica como na tradicional existiram a improvisação como elemento essencial; os gaiteiros da Fonsagrada improvisavam segundo os pontos do baile; na música clássica havia cadências que funcionavam como elementos de contraste para improvisar. Todas as chamadas “variantes” da música tradicional são, em si, improvisações. Hoje interpretam-se obras clássicas com uma flauta transversal de metal que Mozart nem sequer conheceu. Eu tenho ouvido gaiteiros tradicionais a fazer multifónicos (algo que hoje os novos gaiteiros têm explorado e chamam “técnica expandida”). Multiplicar os recursos técnicos dum instrumento é bom, sempre que estejam ao serviço da expressão musical.
– Palavra Comum: Como entendes o processo de criação artística? Que papel tem a improvisação?
– Dúbi Baamonde: O papel da improvisação no processo de criação artística é fundamental. Na própria improvisação como composição espontânea (condicionada harmonicamente ou livre); mas também na composição elaborada e escrita. Eu improviso e gravo-me até achar uma ideia, uma célula melódica fresca que aproveito. A partir daí é só elaborar. A norma fundamental é outra vez o ouvido, por cima de normas harmónicas ou técnicas do instrumento; que não duvido em romper se o resultado me agrada. As normas de consonância e dissonância são normas acústicas, mas também estéticas, que evoluíram com o tempo.
– Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deve ser- a relação entre a música e outras artes (literatura, artes plásticas, etc.)?
– Dúbi Baamonde: Interactuar. Muitas vezes os músicos, ou os artistas em geral, metemo-nos na nossa gaveta particular, no nosso ego artístico que impede a comunicação essencial: os músicos com os músicos; os pintores com os pintores, os poetas com os poetas, etc. Uma fotografia tem cores, brilho, intensidade, perspectiva, pode ter estrutura, timbre, calidez. Todos estes são parámetros também musicais, só há que achar a canle que os liga.
– Palavra Comum: Quais são os teus referentes criativos?
– Dúbi Baamonde: Don Cherry, Jordi Savall, Toni das gaitas, Hermeto Pascoal, Béla Bartok, Jorge Pardo, Brad Mehldau, Miguel Torga, Duke Ellington, Ron Carter, Joe Lovano, Milladoiro, Bird, George Duby, Coltrane, Monk, Rollins, Miles, Antonio Gaudí, David Liebman, Caetano Veloso, John Zorn, Satchmo, Charlie Haden, Dewey Redman, Charles Mingus, Maruja Mallo, Jan Garbarek, Rodrigo Romaní, Lee Konitz, Abe Rábade, Manuel Vázquez Montalbán, Steve Lacy, Kenny Wheeler e muitos mais!
– Palavra Comum: Que músicas/músicos reivindicarias por não serem suficientemente conhecidos (ainda)?
– Dúbi Baamonde: Todos os músicos verdadeiramente tradicionais de quaisquer tipo de músicas.
– Palavra Comum: Que supõe para ti a tradição musical galega?
– Dúbi Baamonde: O ponto de partida. Eu tive ocasião de pertencer a “O son da terra” sendo um cativo, a finais dos 80 e inícios dos 90. Com esse grupo etnográfico percorri parte de Galiza e o ocidente asturiano fazendo recolhas, quando ainda havia algo que recolher. Nesse momento não fui consciente, mas foi uma experiência que me marcou fondamente.
– Palavra Comum: Que relações achas entre a música tradicional e o jazz?
– Dúbi Baamonde: Agora dou-me conta de que os gaiteiros da Fonsagrada ou de Soneira faziam jazz, e de que um preto escravo duma plantação de algodão de Estados Unidos a cantar blues fazia música tradicional. Para mim não há fronteiras entre as músicas sinceras. Esse habitual comentário: “é que não suporto o ruído da gaita”; ou essoutro: “ai!, é que o jazz me mareia” são similares. O primeiro alude ao folclorismo, não à gaita em si; o segundo normalmente alude ao bebop ou ao free jazz. Eu acho que são músicas complementares e que estes prejuízos são fruto do desconhecimento. Não deveria haver fronteiras entre as músicas sempre que sejam sinceras.
– Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das suas criações à sociedade, etc.) estimas interessantes para a música hoje?
– Dúbi Baamonde: Eu acredito na interacção artística e na socialização da arte. Podo colaborar com outros artistas num Enarborar o bosque, num dia dos museus, num acto em defesa da língua galega, num recital poético no mercado das Conchinhas, numa repichoca numa polveira ou numa jam num pub, etc; mas, olho!, além disso a música deve ser valorada e remunerada adequadamente. Penso que manter uma orquestra sinfónica é a nossa “cidade da cultura” particular, uma montra ou escaparate que compra educação de fóra em vez de fomentar a educação musical própria, tomando modelos como o de Venezuela. Também creio que a rede está a criar novos modelos de comunicação para a música como, por exemplo, Hispasonic, Soundcloud, Youtube, Bandhub,… onde podes gravar vídeo e áudio e interactuar com músicos de todo o mundo. Recentemente uma rapaza estadounidense propus-me fazer algo em comum após de ver algo meu em Youtube, por exemplo. Suponho que este tipo de plataformas irão evoluindo para melhor e mesmo com perspectivas de profissionalização.
– Palavra Comum: Que projetos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?
– Dúbi Baamonde: Actualmente estou em vários projectos diferentes mas interrelaccionados, uns vão morrendo e outros nascem:
– Amoeba Split (uma banda de rock progressivo estilo Canterbury, enormemente criativa, a ponto de publicar o seu segundo disco).
– Malandro (bossa-nova. Este projecto está abandonado ultimamente).
– Colaboração com Orquestra Gharbo (colaborações na gravação e nalgum bolo).
– Colaboração com Manoele de Felisa (colaborações na gravação de Cantos da Lembranza, um disco homenagem a Neira Vilas).
– Plastic (trio eléctrico com Bruno Couceiro e Ismael Berdei, que abandonamos).
– La Comparsita (quinteto-sexteto de boleros e música para bailar).
– Trio junto a Inácio Sardiña e Manu Ramil.
– Colaboração no disco Projecto Sapoconcho.
– A OMTG, Orquestra de Música Tradicional Galega. Gostaria de chegar a desenvolver esta orquestra, que conseguimos apresentar em Maio passado no Fórum Metropolitano da Corunha, mas o total desinteresse e falta de apoio fai que, conscientemente, decidamos dissolver e abandonar o projecto.
Este ano estou a trabalhar muito sobre a percussão tradicional galega, e tenho a ilusão de que se veja reflectido numa publicação, também estou a trabalhar a improvisação sobre a gaita galega; e gostaria de iniciar um projecto folque, ainda não sei com quem.
– Palavra Comum: Que achas de Palavra Comum? Que gostarias de ver também aqui?
– Dúbi Baamonde: Gosto imenso de Palavra Comum desde o seu início. É uma grande ideia, meus parabéns. Se calhar, por acrescentar, estaria bem ver alguma colaboração com música escrita.
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