Fausta Cardoso Pereira nasceu em 1977, em Lisboa. Estudou Publicidade, Marketing, Comunicação Social e Sustentabilidade. Trabalhou como criativa copywriter, fez produção de cinema de animação e gestão de projectos na área da responsabilidade social. Alguns dos seus projectos foram premiados no Cinanima – Festival Internacional de Cinema de Animação de Espinho e pela Confederação Portuguesa de Voluntariado. Tem publicado Bom Caminho e O Homem do Puzzle. Em 2017 ganhou o II Prémio Antón Risco de Literatura Fantástica (Galiza), com Dormir com Lisboa.
– Palavra Comum: Que é para ti a literatura?
– Fausta Cardoso Pereira: Espaço de diálogo, de tolerância, de sentidos, de movimentos imaginários, de humanidade. Eu sou o outro e, no entanto, continuo a ser quem sou.
Há tanto de invisível na literatura e eu não sei viver sem esse invisível. Acreditem ou não nele, esse campo imaterial é o meu oxigénio e eu também não vejo o ar que respiro.
Leio à procura do sentido da vida. Arrumo-me enquanto escrevo.
Há quem acuse a literatura de ser perigosa. Têm razão. Nunca se viram rebanhos a ler.
– Palavra Comum: Como entendes (e levas a cabo, no teu caso) o processo de criação literária?
– Fausta Cardoso Pereira: Partilho a ideia de Picasso, de que a inspiração existe mas quando aparecer quero que me apanhe a trabalhar. Por isto, leio muito e escrevo. Por isto, escrevo muito e apago. Depois rescrevo. Volto à leitura. Volto à escrita. Apago. Volto a escrever. Bloqueios? Sim, tenho muitos, mas procuro uma exposição, um filme, um compositor, uma peça de teatro. Às vezes, uma viagem que pode ser a pé, de autocarro, posso ir até ao fundo da rua ou até uma cidade desconhecida. Escuto com atenção, procuro os detalhes, provoco encontros. E, claro, volto à biblioteca, à procura de leituras e releituras para seguir novamente com o desafio da escrita. Procuro lembrar-me todos os dias de que o processo deve conduzir-me a aprendizagens e que eu devo conduzir o processo com entusiasmo e paixão. Quero que o leitor se sinta envolvido com o meu trabalho mas isso só será possível se essa intensidade estiver no meu processo, logo desde o início.
– Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deveria ser- a relação entre a literatura e outras artes (música, fotografia, plástica, etc.)? Como são as tuas experiências neste sentido?
– Fausta Cardoso Pereira: Arte é sinónimo de movimento. É um sistema vivo de influências e a literatura, as artes plásticas, a expressão dramática, a música, o cinema contaminam-se e ainda bem. Seria bom se a nossa civilização conseguisse evoluir seguindo este pressuposto em outras áreas, se conseguisse um diálogo transversal para construir pontes capazes de nos levarem por um caminho de evolução e de respeito pela diferença.
Trabalhei em cinema, gosto de fotografia, teatro, estudei um pouco de música e é natural que me sinta contaminada por estas linguagens.
– Palavra Comum: Quais são os teus referenciais (num sentido amplo)? Quais deles consideras não são suficientemente reconhecid@s -ainda-?
– Fausta Cardoso Pereira: Felizmente leio em outras línguas para além da portuguesa. Felizmente não tenho preconceitos quanto à época ou nacionalidade do autor e desde os clássicos à literatura contemporânea, convivo bem com diferentes estilos e procuro aprender com todos. Mas acima de tudo, procuro escrever como eu própria e por isso toda a minha bagagem literária serve-me de inspiração e de procura pelo que faz de mim uma autora diferente dos outros.
É claro que o meu tempo me influência, assim como outras linguagens artísticas (já o disse atrás) e tenho consciência do caos em que vivo e do caos que transporto, elementos que também estão presentes no que escrevo.
– Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, etc.) estimas interessantes para as artes, na sua comunicação com a sociedade a dia de hoje?
– Fausta Cardoso Pereira: Vou dar como exemplo um projecto que criei e geri durante cinco anos e que contou com o Apoio do instituto de Cinema Audiovisual e da extinta Cartoon Portugal.
O projecto “Os filmes do recreio”, ia a escolas do ensino básico para realizar com os alunos e professores curtas metragens de animação. Depois, os jovens realizadores, entre os 7 e os 9 anos, iam ver os seus filmes projectados numa sala de cinema em conjunto com outras curtas-metragens de animação provenientes de pequenos estúdios e geralmente exibidos apenas em festivais de cinema.
Dois dos filmes que foram realizados ao abrigo deste projecto, foram premiados no Cinanima – Festival Internacional de Cinema de Animação de Espinho.
Criei desta forma uma apetência deste público infantil por cinema de animação de qualidade que não passa nas televisões e que, de outra forma, seria de difícil acesso a estas crianças. Além do mais, estes filmes entraram num circuito de visualização alternativo e conseguiram assim um maior número de espectadores.
Para mim, a arte deve estar em diálogo contínuo com o público mais jovem. Quero com isto dizer que as crianças devem aceder a trabalhos de qualidade porque as ajudam a interpretar o mundo, a apreciar a diversidade de técnicas (narrativas, estéticas, por exemplo) e a tornarem-se públicos exigentes. A arte não deve estar fechada ou acessível apenas a um público privilegiado. Ela, nas suas diferentes disciplinas, deve ser integrada nos planos curriculares. Com recurso à arte, com recurso a histórias bem contadas, é possível apreender a complexidade do mundo de forma lúdica, é possível estimular uma criança, ajudá-la a formar um pensamento e a exprimir-se.
– Palavra Comum: Que perspectiva tens sobre o estado da cultura e literatura portuguesas, em geral (e as suas conexões com outros espaços, nomeadamente com a Galiza)? Que experiências tens, neste sentido?
– Fausta Cardoso Pereira: Em Portugal arrisca-se pouco. As livrarias são cada vez mais espaços ocupados (ou geridos) por grupos económicos que homogeneízam a oferta literária. E as editoras refugiam-se no argumento da fraca procura para não disponibilizarem outros géneros ou novos autores nacionais. Preferem apostas seguras.
Não sou optimista. A solução possível precisa de tempo, muito tempo. Reside numa estratégia educativa, desde a infância, para gerar novos leitores, capazes de escolhas exigentes porque foram ensinados a pensar em vez de ensinados a decorar. Este trabalho, mais qualitativo que quantitativo, não apresenta resultados no tempo útil de quatro anos, duração de um governo.
No entanto, assisto nos workshops que lecciono de escrita criativa, ao trabalho de várias pessoas que querem escrever. Em grande número, este trabalho resulta de leituras cuidadas, diversificadas e à maturação dos temas, ou seja, as pessoas leram e pensaram sobre o que leram. Só precisam de motivação e da disciplina necessária para materializarem as histórias que transportam. São estes exemplos que ainda me dão esperança. Portugal não precisa de ser apenas um local de venda de autores traduzidos. Existe por aqui conteúdo, e há muitos autores escondidos que só precisam de uma oportunidade e, claro, de alguém com coragem para os lançar, em Portugal e no estrangeiro. Acima de tudo, talvez precisemos de acreditar mais em nós, nos nossos talentos.
Julgo que a língua portuguesa, comum em Portugal e na Galiza, pode gerar um intercâmbio interessante de autores. Pode, inclusive, constituir um mercado mais global e por isso mais proveitoso para as editoras. Seria profícuo para todos criar sinergias e trabalhar em conjunto.
– Palavra Comum: Que projectos tens e quais gostarias chegar a desenvolver nalgum momento?
– Fausta Cardoso Pereira: Quero acabar o meu próximo livro. E depois quero escrever outro, e outro, e outro. Quero chegar aos leitores. Gerar movimento, discussão. Não ponho de parte outras linguagens artísticas. Cinema, teatro, passam pela minha cabeça várias vezes ao dia.
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