– Palavra Comum: Que supõe para ti a poesia/a arte?
– Eugénio Outeiro: Considero a poesia, como todas as artes, uma experiência de criação, tanto para quem lê como para quem escreve. O leitor está a criar aquilo que lê, igual que quem escreve está realmente a ler uma realidade que cria nesse ato. Isto é quase um tópico, mas não por isso é falso. O curioso é que, se formos ver bem, isto não é exclusivo das artes, mas de toda a comunicação humana. Nesse sentido, as artes não são diferentes de qualquer forma de comunicação. Ou seja, ser um criador não é optativo: todos e todas somos e estamos a ser em todo o momento criadores e criadoras.
Se realmente existe alguma diferença entre as artes e uma comunicação qualquer, acho que está em que nas artes a comunicação é pensada para se dar numa consciência em que a atenção está focada, concentrada naquilo que se faz. O formalismo, nas artes, seja este mais académico ou mais selvagem, é precisamente um convite a não perder a atenção. Assim, desde essa atenção plena é possível debruçar-se de forma equânime sobre a realidade, e mais concretamente sobre as paixões. Experimentar as paixões com atenção é por isso uma das razões de ser da arte, porque viver as paixões atentamente faz com que estas nos encham realmente. Uma paixão vivida sem atenção é uma paixão que realmente não foi vivida, e isso leva-nos inevitavelmente à insatisfação. A poesia, assim, é também um convite a uma vida plena.
– Palavra Comum: Como se leva a cabo, no teu caso, o processo de criação artística?
– Eugénio Outeiro: Tudo começa com uma ideia recorrente. Normalmente é uma ideia que se me vai aparecendo nas situações mais diversas, da casa de banho ao lugar de trabalho, passeando ou preparando a comida, e mais duma vez até dormindo, sonhando aquilo que acabo por escrever. Então pouco a pouco vai nascendo um projeto, que vou guardando na cabeça até que tenha tempo de pôr-me a escrever. Isto normalmente faz com que a vontade de escrevê-lo cresça. Assim, quando as circunstâncias o permitem, começo a dar-lhe forma. Se se trata de um projeto maior, como um livro, tento dar-lhe uma estrutura e depois preenchê-la. É em certa medida mágico, porque mesmo quando um projeto demora muito, e passo muito tempo sem escrever um poema que continue os outros, dalguma maneira a paixão inicial reaparece segundo vai aparecendo a atenção na escrita. Por outro lado, o facto de não encerrar o projeto também lhe dá força, de um ponto de vista psicológico, e às vezes vejo-me forçado a escrever coisas que não estavam no projeto inicial. Suponho que, num caso e noutro, isso é símbolo de que estou a dar expressão a uma realidade funda. Por suposto, às vezes isto não se dá, e o projeto passa à gaveta da ideias mortas, que nunca chegam a ser acabadas. Já houve muito disso, mas conservo realmente pouco: o morto, morto está.
– Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deve/pode ser- a relação entre as diversas artes (literatura, audiovisual, música, etc.)?
– Eugénio Outeiro: Gosto, em geral, de misturar coisas de forma coerente. O pensamento analógico, mais do que o discursivo, é próprio das artes, e portanto é natural que entre elas existam harmonias que venham a materializar-se em obras mestiças. Sou, portanto, muito favorável a que exista entendimento entre elas. Mas acho que existe um perigo na mestiçagem: perder a necessária atenção ou pulsão criativa inicial. Especialmente quando é preciso a participação de mais pessoas, o que é frequente, é fácil para mim perder-me, e acabo por sentir-me incómodo. De facto, só em contadas ocasiões tenho participado em obras desse género. Lembro, por exemplo, uma vez que recitei uns poemas meus, enquanto Ramón Neto (com quem me une uma funda amizade) tocava a viola. Foi uma ocasião excecional com uma pessoa muito especial, uma coisa que lembrarei sempre.
– Palavra Comum: Que vínculos encontras entre arte(s) e Vida (ou a Realidade, em termos mais amplos)?
– Eugénio Outeiro: Suponho que em grande medida esta pergunta já foi respondida, mas vou tentar ser ainda mais explícito: sou budista, pratico o Zen, e só consigo entender a arte e a vida deste ponto de vista. Assim, a arte é para mim, como já disse, uma prática de atenção plena. É por isso que pode ser mais real que o que normalmente chamamos realidade, e é fácil perder-se nela como Quixotes. Ser consciente disso é importante, porque, como criadores e consumidores, nos faz situar corretamente a arte em relação à vida, em diálogo com ela, como parte dela própria, mas nem por cima nem por baixo.
Por outro lado, também acho que a arte não deve tentar atingir nada, e nesse sentido é como uma espécie de zazen (a meditação sedente do budismo zen): se tencionarmos fazê-lo bem, estaremos fazendo-o mal. O mestre zen Kodo Sawaki costumava dizer aos seus discípulos: “Zazen não serve para nada, e enquanto não consigais um zazen que não sirva para nada, o vosso zazen não servirá para nada”. A arte é similar: se tenta ‘atingir’ qualquer coisa, perde todo o seu valor, porque o seu valor é a experiência da própria arte, e só dessa maneira pode dialogar com a existência.
– Palavra Comum: Que referentes tens no teu trabalho criativo -num sentido amplo-?
– Eugénio Outeiro: Num sentido amplo, e ainda diria holístico, sem dúvida o meu referente mais importante é o mestre zen Dokushô Villalba, de quem tenho a funda honra de ser discípulo formal desde há quatro anos. Sem me ter dado lições de estética, os seus ensinamentos estão em praticamente tudo o que faço, e a criação, como acho que já se terá notado, não é uma exceção.
Já mais centrado no artístico, José Ángel Valente foi sempre uma referência para mim desde a adolescência, e sem ele duvido que tivesse chegado a todo o demais. Durante muito tempo escrevi à sombra do seu estilo, muito focado no poder comunicativo do silêncio, mas nos últimos anos tenho-me visto influído muito fortemente (e movimentado emocionalmente) com a obra poética de Ted Hughes. A crueza das coisas que narra nos seus versos, em contraste com a frieza que eu poético demonstra em relação a elas, em obras como Crow ou Moortown Diary, inspira-me muito.
Quanto a autores/as galegos/as contemporâneos/as, sinto-me muito próximo da obra de Mário Herrero, Ramiro Torres e Pedro Casteleiro, cada um com os seus referentes e estilos pessoais. Também gosto muito da obra de Susana Sánchez Arins e, como não podia ser doutra maneira, daquele que tem sido para mim mais do que um irmão, Ramón Neto. Por acaso, tenho também grande simpatia por estas pessoas, mesmo sem conhecer pessoalmente algumas delas, sinal de que para mim a obra não é independente da pessoa.
– Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das suas criações à sociedade, etc.) estimas interessantes para a arte (em geral) hoje, nomeadamente no que tem a ver com o contacto com o público?
– Eugénio Outeiro: Nos últimos tempos não me tenho preocupado muito por este tema, portanto não sei dizer muito bem. Talvez o próprio autor seja o meio mais importante pelo que a arte chega ao público, portanto dedico-me a cuidar isso, ou a tentar na medida das minhas possibilidades.
É verdade que mantenho um blogue (Intra) desde 2003, que já me tem dado algumas alegrias, mas sempre foi antes uma espécie de garrafa atirada ao mar do que propriamente uma estratégia para chegar ao mundo.
Seja como for, acho muito importante notar que o meio não é diferente da obra.
– Palavra Comum: Que projetos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?
– Eugénio Outeiro: Há três anos que trabalho num projeto realmente vagaroso e emocionalmente duro. Intitulei-o Herança, e nele tenciono orbitar à volta do conceito budista de karma, entendido como condicionamento causal da psicologia do indivíduo que sou eu. Os condicionamentos materializam-se em pessoas reais que marcaram e condicionaram a minha existência, e a eles e elas escrevo cada um dos poemas. Como digo, é um projeto que envolve muito movimento emocional, e por isso ainda vou demorar bastante tempo em acabar. Por enquanto, os sete poemas de que consiste podem ser lidos no meu blogue.
Para além deste, nos últimos meses anda-me na cabeça a possibilidade de escrever alguma coisa sobre sexualidade. Por enquanto não passa de uma ideia abstrata que gostava de desenvolver. Logo se vê se vai dar nalgo sério…
– Palavra Comum: Que achas de Palavra Comum? Que gostarias de ver também aqui?
– Eugénio Outeiro: Acho que Palavra Comum era um projeto necessário que por fim alguém se decidiu a criar. Há tempo que intuo a necessidade de um projeto desta características, mas sentia-me incapaz de o levar avante. É uma sorte contar com pessoas como vós, e que ainda por cima vos lembreis de mi. Sinto-me sinceramente agradecido.
Quanto ao que gostava de ver por aqui, acho que na Galiza se está a fazer magnífico audiovisual e talvez poderia aparecer por aí alguma coisa. Para começar recomendaria Marcos Nine, mais um amigo do peito, cuja obra também é bem interessante.
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