– Palavra Comum: Que é para ti a filosofia?
– Luís G. Soto: Uma filósofa ou filósofo é alguém treinado no pensamento, que tem essa competência, que desenvolveu essa habilidade, pensar, e que a converteu em ofício ou parte do seu ofício. O primeiro acontece com o filósofo profissional, habitualmente professor. O segundo, com aqueles filósofos de formação que exercem outras profissões.
Qualquer pessoa, na medida em que teve contato com a filosofia, em geral porque fez parte dos seus estudos, é nessa medida filósofo. Neste sentido, todos somos um pouco filósofos espontâneos, tendemos a desenvolver um pensamento próprio, ou que cremos próprio. Participamos, não apenas passivamente, da opinião comum. Mas, para irmos além do sentido comum, para aperfeiçoar o sentido comum, é absolutamente necessária a filosofia acadêmica, o treino no pensamento, conhecendo e remoendo o que pensaram os outros. Sem isto, sem filosofia, quase não somos capazes de pensar. Seremos capazes, sim, de fazer operações mentais, mesmo muito complexas, como parte de uma maquinaria, que é o que sucede quando usamos as ciências e as técnicas, e mesmo as artes. Que, na realidade, nos usam elas. Pensar é outra cousa, em parte mais simples: compreender, analisar, julgar, expressar, comunicar, decidir. É como falar, mas imprimindo uma consciência e uma vontade na linguagem. Saber usar não apenas a gramática e o dicionário, mas também a enciclopédia. Ser capaz de escrever, um próprio, páginas na enciclopédia, no manual da cultura e a experiência.
Para isso, insisto, é absolutamente imprescindível a filosofia acadêmica. Sem ela, apenas haverá tenteios.
Para a UNESCO, a filosofia é uma peça finque da democracia e a liberdade e recomenda a sua presença no sistema educativo como elemento basilar da educação e formação. Obviamente, por isso mesmo, mas indo no sentido contrário, estados e governos tendem a esquivá-la, restringi-la ou bani-la.
– Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deve/pode ser- a relação entre as diversas artes (literatura, audiovisual, música, etc.), e a filosofia?
– Luís G. Soto: As artes podem ser um ponto de partida, e também de chegada, para a filosofia. Nelas há pensamento, e outras cousas, que interessam à filosofia. Sempre houve, e há, diálogos, implicações, cruzamentos, choques, etc.
No caso de Galiza, a literatura, muito a poesia, como foi historicamente um refúgio de toda a cultura (e não apenas da cultura, também da política, etc.), é especialmente rica. Convida muito à reflexão, porque está carregada de conceitos. E não só. Porque é, quase, o único campo e o único labor coletivos institucionais (um dos poucos, nos últimos séculos) de experiência, e experimentação, persistente e sobrevivente da entidade galega. Também da identidade, com todo o que esta tem de conceptual. A literatura, a poesia, fazem pensar por toda a parte. E em Galiza mais, por essa circunstância histórica.
Em geral, a relação entre a filosofia e as artes é um campo infinito, de possibilidades infinitas. De facto, estão a fazer-se, desfazer-se e refazer-se entre elas. O que, na minha opinião, não significa que percam as suas especificidades.
– Palavra Comum: Que referentes tens, num sentido amplo? Quais reivindicarias por serem pouco (re)conhecid@s ainda?
– Luís G. Soto: Na minha formação os pensadores mais importantes são Barthes e Aristóteles, pois são aqueles a que dediquei mais tempo como investigador. Tempo de pesquisa em que, à vez, o investigador se forma a si próprio, em contato, quase convivência, com o investigado. Não são pensadores que necessitem ser reivindicados. Mas sempre se podem aprender cousas deles. Por isso, está bem difundi-los, comentá-los, criticá-los, rebatê-los, etc.
Depois, influem muitos outros, não apenas filósofas ou filósofos. Ao fio do trabalho e o lazer, incorporam-se muitas vozes e falam no pensamento próprio. Refiro-me às leituras, não apenas de grandes ou clássicos, mas também daquilo que fazem os companheiros de profissão, amigos doutras latitudes, o que escreve a gente próxima, os conterrâneos, etc. Estou a pensar nos colegas galegos, espanhois e portugueses, sobre todo.
E não apenas a filosofia, também a cultura em geral, mormente a literatura, em especial a galega, fornecem referentes no meu trabalho.
Posto a reivindicar, e saindo da filosofia, salientaria o interesse da literatura de Carvalho Calero. De todas as maneiras, creio que o mais importante é estarmos de olhos abertos e atender ao que se está a fazer ao nosso lado. Isso é o primeiro que reivindicar e espalhar.
– Palavra Comum: Que implicação tem a filosofia com a vida?
– Luís G. Soto: Muita. E, se permitirdes a piada, toda… se é a profissão, como no meu caso, que sou professor de filosofia. Ora bem, isso foi um acaso feliz: poder dedicar-me profissionalmente à filosofia.
Ora, em geral, a filosofia alimenta, se não fornece, cosmovisões e projetos vitais: muitos, diversos. A filosofia oferece materiais e ferramentas para perceber, compreender, interpretar, julgar, expressar e comunicar, decidir. Ou seja, a filosofia afeta, decisivamente, a imagem do que é e, também, a ideia do que cada um pode e/ou deve fazer. A meu ver, a filosofia é um modo de orientar-se em geral, de avaliar situações, percursos e projetos. É algo de que pode beneficiar-se qualquer pessoa.
Pela minha parte, é a avaliação e orientação que prefiro, que acho mais certa, mais realista, mais próxima do que pode ser o real (o que há) e do que alguém pode fazer (como pode, se é que pode, dirigir a sua conduta, o seu comportamento). A certeza é sempre relativa, muito limitada, porque somos indivíduos falíveis, com recursos formativos e informativos escassos e assediados pelo engano por toda a parte. Mas é uma certeza, uma segurança, à medida do indivíduo (e as suas escassas possibilidades), que afinal é o que age, sofre, goza, etc. E disse realista, mas outros diriam pessimista, porque a filosofia ensina a avaliar à baixa, a crer pouco e acreditar em quase nada, e a formular projetos modestos, carentes de ambições.
– Palavra Comum: Trabalhas no ensino. Como é a tua experiência neste campo? Para onde deve caminhar o ensino da filosofia?
– Luís G. Soto: A minha experiência é muito satisfatória. Ensinar é uma forma também de aprender. Os estudantes testam as nossas posições, renovam as questões, as perspetivas, etc. Nos anos que levo, desde começos da década de 80 do século XX, constato o interesse constante, mesmo crescente, dos estudantes. No entanto, houve uma deterioração do ensino, no fundo e nas formas, e um declínio importante quanto aos recursos materiais e humanos.
O ensino da filosofia deve incluir, a meu ver, leitura, análise, debate, interpretação, a partir dos textos, autores e temas próprios (tópicos, poderíamos dizer) da filosofia. E daí podemos olhar para outros campos. Não me parece que se deva variar grande cousa a respeito do que se vem fazendo tradicionalmente. O que acontece é que há que o fazer bem. No ponto que sim acho importante variar algo é na avaliação. Devem empregar-se, mormente mas não exclusivamente, provas objetivas, por exemplo, testes. A objetividade (imparcialidade, etc.) é um valor muito importante, que a filosofia, que põe em primeiro plano a racionalidade, deve privilegiar.
– Palavra Comum: Fala-nos da tua perspetiva sobre a saudade…
– Luís G. Soto: É um assunto pelo qual tive, durante muito tempo, um interesse apenas marginal. Numa dada altura, ligou-se a outros interesses, nomeadamente a poesia de Pondal. Que a saudade estivesse na origem de uma das suas primeiras formulações (“A campana d’Anllons”), que o é também da poesia galega contemporânea, ateou esse interesse. De facto, quase como uma divagação a partir de Pondal, surdiu o trabalho, depois livro, O labirinto da saudade (Laiovento, Santiago de Compostela, 2012), que é um percurso pela saudade em Galiza e Portugal.
E houve outro entroncamento: com a ética e a política, favorecido por trabalhar eu na área da filosofia moral. O ético e o político estão já em Pondal, mas sem a ética e a política filosóficas são difíceis de explorar, de tirar daí grande cousa.
Em resumo, a minha perspetiva é fundamentalmente ética, significando isto mudar a compreensão mais habitual: passar a reparar menos no sentimento ou sensação e mais na comunicação e a mensagem, menos no sujeito singular ou si próprio e mais no outro e na relação, menos no pensamento e mais na ação, etc.
Todo isso, ou pelo menos alguns elementos, aproximou-me da tradição portuguesa, de algumas das suas correntes. Houve aí outro entroncamento, já na gênese. Mas, não sei se o que eu faço segue a ser, no fundo, muito galego, pois, para mim, a forma básica e matricial é a experiência do desterro, talvez um desterro habitável, no qual a habitação está como uma potencialidade.
– Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das suas criações à sociedade, etc.) estimas interessantes para a filosofia hoje, nomeadamente no que tem a ver com o contacto com o público?
– Luís G. Soto: O essencial para a filosofia é a leitura, a reflexão e o diálogo. Tradicionalmente, mas também na atualidade: o texto, a solidão e a companhia. Os veículos e as vias podem ser, e são, vários. O que multiplica a difusão, os leitores e os parceiros é bom. Ora, penso que a base é a transmissão tradicional, através do ensino, da escola, passando pelo liceu, à universidade. Com certeza, é necessário adaptar-se ao público, enquanto este é passivo, recetor. Mas, quando é ativo, o público, produtor, quer o contato direto com a filosofia, ou seja com o pensamento de filósofas e filósofos tal como o fizeram ou o estão a fazer.
Com isto não pretendo desdenhar as implicações e hibridações da filosofia, que felizmente há muitas na cultura contemporânea. E é desejável que haja mais. Mas isto não exclui o contato direto, que, contra o que possa parecer, interessa ao público. A filosofia é como o anúncio que Pessoa fizera para um famoso refresco, do que afinal não foi autorizada a sua comercialização em Portugal: primeiro estranha, depois entranha. A filosofia pode suscitar rejeição, desvio do olhar,… porque desencanta; mas, quando se experimenta, a gente quer mais, toma-a como algo próprio.
– Palavra Comum: Que projetos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?
– Luís G. Soto: Na atualidade, há três cousas em que ando e destacaria. Três publicações, que vêm de atrás, mas que estão a começar, ou vão dar ainda, os seus primeiros passos.
O primeiro é a publicação em português de O labirinto da saudade sob o título Meditação sobre a Saudade (Zéfiro, Sintra, 2015). Como o livro, pelo seu conteúdo, é em parte português, a publicação em Portugal é como se tivesse completado o seu périplo.
Depois, a tradução ao galego de O Mar do Norte, de Heinrich Heine, acompanhada de introdução e interpretação, publicada por Espiral Maior (A Corunha, 2015). É um trabalho feito durante bastante tempo, em vários momentos: os verãos de 1989 e 1990, outro verão chegando ao final do s. XX e de janeiro a abril de 2005. Isso, a tradução. O estudo e a meditação são trabalhos posteriores, redigidos em 2010. Procurei fazer uma tradução “algo” original, um pouco diferente, em diálogo com a poesia galega contemporânea. E fiz também trabalho filosófico, de reflexão, a partir do poemário.
E, por último, Barthes filósofo (Galaxia, Vigo, 2015), uma vindicação conjunta de Barthes, a filosofia e o galego. Este ano 2015 é o centenário do nascimento de Barthes e há uma torrente de publicações, atividades, etc. em Europa e América. Este livro é uma gota, um copo de água, nesse mar.
– Palavra Comum: Que achas de Palavra Comum? Que gostarias de ver também aqui?
– Luís G. Soto: Uma iniciativa, e uma realidade, muito positiva. É mister fazer comunidade, levantar pontes, construir interfazes. Daí surgirão ações. Fazer comunidade não é dissolver as diferenças, mas conhecê-las melhor, chegar a respeitá-las, saber harmonizá-las, lograr integrá-las.
Palavra Comum pode contribuir a melhorar as nossas navegações tanto no mar de dentro (Galiza) como no mar de fora (Lusofonia).
Não direi que gostaria de ver também aqui filosofia, porque isto é uma responsabilidade daqueles que nos dedicamos a filosofar, e se não estamos é porque não entramos, porque já vejo que as portas estão abertas.
NOTA: a fotografia do autor é de Eduardo Castro Bal, e foi realizada em 2014.
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