– Palavra Comum: Que é para ti a poesia, e a literatura, em geral?
– Maria Dovigo: Uma casa na ilha.
– Palavra Comum: Como se leva a cabo, no teu caso, o processo de criação poética?
– Maria Dovigo: A poesia é um convívio com um animal selvagem, um movimento contínuo entre as duas metades da sereia, o peixe e a mulher. Sinto a poesia como uma experiência de trânsito contínuo por todas as faces do humano, desde a condição animal à mais transcendente, do profundamente subjetivo ao namoro com o Outro, seja o amante ou qualquer imagem da divindade. A poesia que mais gosto é a mais lírica, um exercício de afinação deste este fluxo incessante do discurso interior com o quotidiano visível. Da maneira em que eu a vivo, afino as palavras situada em cenários, não consigo vê-las de maneira abstrata. Inspiram-me os espaços e os seus ecos, o jogo contínuo entre o que vejo e o que creio, entre o ausente e o presente. Inspira-me o mar interior que me acompanha nos meus trânsitos, a raiz primeira da ria, a terra das Marinhas, o farol da Crunha, essa luz no escuro que me ensinou a não temer a noite e a pensar por clarões. Inspira-me a aventura, sentir a alma como uma nau, a opção que tomei de viver como estrangeira numa outra margem da minha própria matriz cultural. Para criar preciso de explorar o íntimo, entrar no ventre da baleia, o grande oceano que não separa, que dilui os outros e sempre, sempre, ter no horizonte a procura do paraíso, a ilha do sol ao meio-dia. O resto é muita leitura e muito riscar papéis. Amo a imaginação para a plenitude humana e para a saúde, também no sentido etimológico da palavra, salvação. Se não vivemos com naturalidade essa necessidade de imaginar e lhe damos vias para a comunicar, entregamos o desejo aos publicistas e somos escravos do marketing. E a imaginação é de graça, uma experiência interior do limite que pode e deve ser transgredido para estar no mundo.
– Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deve/pode ser- a relação entre as diversas artes (audiovisual, fotografia, música, etc.)?
– Maria Dovigo: Dizia algures Borges que a história universal é a história de umas poucas metáforas. Creio que todas as artes são via para a expressão e a expansão livre dessas metáforas por diferentes linguagens. A minha é a palavra.
– Palavra Comum: Que referentes tens no teu trabalho criativo -num sentido amplo-?
– Maria Dovigo: A minha primeira memória poética é a música tradicional, as canções que a minha irmã cantava, e sinto um laço luminoso com essa poesia. É o eco da casa, da família, daquilo que me vai no sangue e que perdura. Para além disso, sou leitora compulsiva desde os oito anos, por dizer alguma idade. Tenho um catálogo aberto que sempre me parece pequeno. Mas há autores que são companheiros fieis. Por citar só os poetas que revisito continuamente e dos que tomo apontamentos: na tradição galega, a lírica medieval, Rosalia e Pondal, Manuel António, Avilês de Taramancos e Xohana Torres. Desses mundos afora, Shelley, Petrarca, Stevenson (como poeta, sim), Neruda, Emily Dickinson, a irlandesa Eavan Boland, Garcia Lorca, o barroco espanhol. Dos poetas portugueses gosto especialmente de Miguel Torga. Creio que tem uma honestidade humana pouco habitual. A lista está aberta. Está a chegar a mim poesia de autores africanos que creio que é o mais vivo que se está a escrever em português na atualidade. Darei notícias para a Galiza, espero. Eles bem merecem.
– Palavra Comum: Que vínculos encontras entre arte(s) e Vida (ou a Realidade, em termos mais amplos)?
– Maria Dovigo: A arte é a outra vida do mar, é o que me dá os instrumentos para desmontar o arquétipo da máquina sobre o natural, no que está o humano e o seu pensamento, e ganhar espaços livres para a alma.
– Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das suas criações à sociedade, etc.) estimas interessantes para a arte (em sentido amplo) hoje, nomeadamente no que tem a ver com o contato com o público?
– Maria Dovigo: A mudança pela subjetividade, não por ser um princípio único de verdade, mas porque tanto social e objetivo e … abafa-me a palavra. A arte que amo dá centralidade ao coração e à compaixão, ao aqui e agora, ao humano concreto, defende-o da alienação e da desmesura do objetivo como princípio de verdade. Creio que muita escravatura começa nas categorias. Como no poema de Celso Emílio, outros nomes nos foram dados para além das categorias que sobre nós caem e que nos vão alheando até fazer-nos estrangeiros de nós próprios.
– Palavra Comum: Que vínculos existem -e para onde se pode caminhar naturalmente- nas relações com a Lusofonia, e com outros âmbitos culturais? Como é a tua experiência neste sentido (morando em Lisboa)?
– Maria Dovigo: Creio que nós, o “Nós” que somos, temos de superar o sentimento de carência com que com demasiada frequência olhamos para o exterior e que nos faz encerrar-nos no castro. Estamos longe de ser o povo mais desgraçado da terra, muito longe, e também não somos uma exceção na humanidade. A Galiza dos castros e a Galiza dos portos é universal, como todas as culturas da terra. Fazemos parte, o nosso estar no mundo faz-nos parte de vários espaços internacionais: o Atlântico europeu por geografia e não só, a ligação com a América pela diáspora, a rede que a norma internacional do galego, o português, nos abre. O isolacionismo cultural é artificial e é preciso que acordemos dele vendo a quem beneficia. Eu preciso da continuidade cultural galega não só por ser a minha origem, mas porque a cultura galega tem chaves únicas nesta comunidade, neste nós que a dita lusofonia (termo que não me entusiasma, mas não é pelo nome que discuto) abre. Porque esta língua para nós é a língua do clã, nasceu no chão galego. Isso não nos dá propriedade sobre ela, até porque temos de sair da Galiza para curar a ferida da língua, incluida a ferida desta deformação institucional que começou há décadas. Precisamos do resto dos países que falam português para ter uma imagem digna de nós. Mas, por outro lado, esse acesso à memória mais antiga e mais persistente da língua, a que está nos nomes dos lugares, nos apelidos, na tradição oral, na língua que foi transmitida não por via académica, mas por via oral, torna visíveis muitas verdades que são necessárias ao conjunto dos que transitam pelo português, e onde há verdade há liberdade. O conjunto da lusofonia precisa do alento democrático que anima a melhor tradição galeguista contemporânea. Subir a memória do clã para o nível da luz, da consciência, o despertar do sono de Pondal e mesmo ter a coragem, como teve Castelão, de dizer também “renego da História” quando a História afoga a Vida e a alegria é algo que aprendi da cultura galega. Por outro lado penso, como dizia María Zambrano algures, que os exilados são a consciência da sua comunidade. A mim viver fora da Galiza deu-me espaço para ver a nossa cultura fora do cenário de dualidade Galiza-Espanha e reinventar-me com uma liberdade que nunca me teria permitido dentro da sociedade galega territorial. Vejo a Galiza com outras chaves interpretativas, vejo como é necessária a soberania sobre a nossa herança simbólica, sobre as nossas narrativas, as nossas metáforas, os nossos nomes. Não é só uma questão social, política, económica, material, nem sequer linguística. É bem mais funda. É pensar-nos desde um centro em nós.
Em relação aos demais, só fazemos bem à comunidade em português da que inalienavelmente faremos sempre parte, como vivos ou como fantasmas. Para mim a rede que o império português criou é uma oportunidade de comunicação da que gozo diariamente e na que espero que a trave de alcatrão que a expansão marítima e os impérios atlânticos trouxeram à humanidade seja, finalmente, a trave de ouro “da feliz moradia, da promessa”, como no verso de Avilês de Taramancos. Todos nesta comunidade temos peças únicas. Penso no caso de São Tomé e Príncipe, duas ilhas no meio do Atlântico com menos população residente que a cidade da Crunha, mas que têm um ângulo de visão sobre a circulação da gente e cultura no espaço atlântico, das múltiplas genealogias que nos cruzam em diferentes direções e que estão em contínuo movimento, que mais ninguém têm. Creio que a nossa presença é garante de que se pode descolonizar o discurso da língua, para começar. Há uma semente em nós e em muitos outros povos da Terra de uma universalidade feita sem separar-nos da matriz, do local, do natural, da infinita diversidade da vida. Essa é a oportunidade que neste momento me dá essa rede em português, uma nova maré da nossa nunca satisfeita sede de irmandade.
– Palavra Comum: Que projetos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?
– Maria Dovigo: Ando com vários trabalhos nas mãos: organizar o meu primeiro livro de poemas, divulgar a cultura galega (e faço especial ênfase na contemporânea e sobretudo em algumas pessoas que considero referentes de autoridade no pensamento) nos foros que se me vão abrindo e, porque não, num ensaio, e outro que tem a ver com a minha profissão docente: encontrar vias para levar a poesia às aulas pelo valor intrínseco da poesia e não pelos seus valores objetivos como documento linguístico, histórico ou o que quer que seja. Não suporto mais uma escola feita para padronizar e submeter a criatividade.
– Palavra Comum: Que achas de Palavra Comum? Que gostarias de ver também aqui?
– Maria Dovigo: Creio que a vossa revista é um exemplo por alguns princípios que a regem: a abrangência de artes, géneros, geografias… Gosto especialmente das entrevistas porque não é muito habitual encontrar as reflexões que nelas leio sobre a poesia, a arte em geral, as relações com a sociedade, feitas pelos próprios criadores e não por teóricos. É um gosto meu pessoal já desde que era estudante de Filologia, as poéticas feitas pelos próprios criadores. Abrindo a vossa revista vêm-se tantas secções que só consigo desejar-vos que as fadas vos sejam propícias para que todos os encontros que sonhasteis se tornem reais.
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