Nasceu em 1963, em Lisboa e viveu a sua infância em Angola. Regressou em Fevereiro de 1975 e estudou na Universidade Nova de Lisboa, onde se licenciou em Filosofia, realizou dissertação de mestrado (tendo publicado o livro O Anjo Melancólico a partir da dissertação) e se doutorou, em Filosofia Contemporânea, com a tese Walter Benjamin, Messianismo e Revolução: a História Secreta. Actualmente é professora no Ensino Secundário e foi Professora Auxiliar no IADE (Creative University of Lisbon) entre 2011 e 2015. É actualmente membro integrado do Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa (desde 2012) e Membro Associado do Collège d’Études Juives et de Philosophie Contemporaine, Membro da Direcção do Pen Clube Português, da APE (Associação Portuguesa de Escritores) e da APCL (Associação Portuguesa de Críticos Literários). Publicou várias obras de Ficção, Poesia e Ensaio. Organizou congressos internacionais sobre María Zambrano (com Maria João Cabrita e Isabel Lousada), Walter Benjamin (com Bragança de Miranda, Fernando Cascais), Paul Celan (com Cristina Beckert, Carlos João, Ricardo Gil Soeiro), Levinas (com Maria Lucília Marcos e Paulo Barcelos). Foi professora-visitante em Brasília (UNB), Rio de Janeiro (UFRJ) e Goiânia (UFG). Colabora regularmente com a Revista Colóquio-Letras e com diversas publicações, em Antologias de Poesia. Participa regularmente em mesas-redondas e conferências.
– Palavra Comum: Que é para ti a poesia/literatura?
– Maria João Cantinho: Creio que é difícil falar de poesia ou de literatura de uma forma abstracta, só consigo falar dela enquanto «experiência», seja de escrita, de leitura ou, ainda, de crítica. Creio que a poesia é uma forma de olhar, antes de mais, como diria o Pasolini, falando de uma espécie de «desvio» do ponto de vista. Mas isso é também a literatura, de modo geral ou até a arte, que consegue «ver» o mundo de forma diferente, apresentando-o na linguagem de outro modo que a nossa linguagem o pode fazer e faz. Por isso (e não estou a falar de mim) há tão poucos poetas e escritores, porque não se é quando se quer ou porque se quer. Para mim é uma forma de respirar, com um fôlego diferente. Às vezes mais lento, outras mais rápido, mas sempre respirar como modo de me manter viva. Preocupam-me menos as classificações do acto, as definições académicas da escrita, seja da poesia ou da literatura.
– Palavra Comum: Como praticas, no teu caso, o processo de criação artística?
– Maria João Cantinho: Não costumo pensar nisso, escrevo quando posso e tenho pouco tempo, é uma condicionante terrível. Além de ser professora a tempo inteiro, sou investigadora de um centro e ando sempre à procura de tempo para escrever. Isso dantes punha-me doente, mas passei a encarar de outra forma essa contingência. Normalmente gosto da noite e do silêncio, que me permite recolher-me e encontrar esse lugar propício à escrita. Mas não tenho nenhum método especial, nenhum ritual específico, só procuro uma espécie de atenção que é hoje cada vez mais difícil de encontrar. E depois é procurar essa radicalidade, a entrega à linguagem e a uma embriaguez que nasce dessa entrega solitária à escrita. Acho que a música é talvez o único recurso que me leva até ao lugar. E depois é trabalho. Primeiro escrever e depois cortar, deitar fora, deixar só o que merece ficar. Mas isso é questão de trabalho. É a parte mais difícil, a de decidir o que fica.
– Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deveria ser- a relação entre a literatura e outras artes (plásticas, música, audiovisual, fotografia, etc.)? E entre Arte(s) e Vida?
– Maria João Cantinho: Começo por dizer que esta ideia de que os escritores se relacionam com as outras artes não é uma condição necessária. Estou a pensar em autores como Jack London, Conrad, Hemingway, Faulkner e tantos outros, que alimentavam a sua escrita de experiência humana, no seu sentido mais trivial. São histórias de vida, essencialmente, se quiseres chamá-las assim, muitas vezes baseadas na tradição oral. São grandes escritores, mas sem acharem que essa componente artística seja importante para a sua escrita e poderia dar-te dezenas de bons escritores cuja obra não passa por aí. Eu também não acho que seja obrigatório, mas de uma forma mais ou menos consciente o que vês, ouves ou o que te impressiona molda a tua forma de olhar o mundo. Creio que é muito mais por aí. No meu caso, tanto a música como a pintura e o cinema estão sempre presentes, não que eu tenha de «mostrá-lo» ou exibi-lo, mas sobretudo na construção da narrativa, por exemplo, vem-me do cinema. Mas o ritmo da linguagem, o fôlego, vem da música. Muitas vezes escrevo com música.
Quanto à segunda parte da tua pergunta e que tem que ver com a radicalidade da escrita, creio que cada um vive o processo criativo de forma diferente. Não há dois escritores ou poetas iguais e o que me parece é que os grandes escritores são os que se entregam à escrita como à vida. São aqueles que são radicais e não fazem concessões ao leitor, na verdade os que não distinguem a vida da sua arte, não conhecem fronteiras e possuem essa liberdade essencial. Porque não é possível aos que escrevem assim distanciarem-se da sua própria postura perante a vida. Admiro muito essa liberdade. Nos dias que correm é uma atitude ética e de coerência absoluta.
– Palavra Comum: Quais são os teus referentes criativos (desde qualquer ponto de vista)?
– Maria João Cantinho: É difícil estabelecer uma ordem (sobretudo de prioridade) entre as influências, o que chamas os referentes. Creio que a própria literatura (e são muitos os autores que me impressionaram, sobretudo na literatura do século XX, como Proust, Thomas Mann, Kafka, Dostoievski, Joyce, Jorge Luis Borges) em primeiro lugar porque foi também o que me levou à própria escrita, o desejo de contar histórias (quando era muito pequena), que depois evoluiu para outra coisa que ainda não sei bem o que é, mas que me move. Depois a música, que me acompanha sempre, às vezes obsessivamente. Mais do que a pintura. E tenho um livro de poesia, Sílabas de Água, que foi um trabalho com uma fotógrafa e artista, Ana Calhau. Talvez volte a fazer e é uma coisa de que gosto muito, trabalhar com artistas, perceber pontos de vista e sensibilidades outras. Gosto sobretudo de aprender e ouvir o outro. Mas acho que em Portugal, os escritores sabem o que se faz, conhecem artistas, mas não há um diálogo entre escritores/poetas e artistas. Era preciso criar um diálogo maior.
– Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das obras com a sociedade, etc.) estimas interessantes para a criação literária hoje?
– Maria João Cantinho: Não sou crítica de arte e não gosto de falar do que não sei, duas boas razões para fugir um pouco à pergunta. Mas creio que o teatro e as artes plásticas, a fotografia, são ainda as artes privilegiadas pelos escritores. Mais do que o cinema e a música, a não ser o fado, que trabalha com poetas em particular, que possui uma autonomia. Sim, talvez o fado seja um veículo privilegiado da poesia portuguesa. Mas existe uma separação entre o universo dos «literatos» e o dos artistas, creio que não foi sempre assim, nos anos 80 frequentavam-se muito mais, nos anos 90, também, havia o pólo do Bairro Alto e do mítico “Frágil”. Também o “Café Gelo”, nos anos 70 constituiu um belo exemplo e muitos poetas eram artistas plásticos. Era tudo muito mais pequeno e havia menos coisas a acontecer. Hoje nasceram novas formas como a performance (que trabalha com a poesia), mas, para além disso, creio que é mais difícil essa passagem. Os lugares de circulação, para além de tertúlias e apresentações, são os festivais literários, que vieram substituir os espaços tradicionais. E os escritores dão-se com escritores e pouco mais. O nosso universo está de tal forma fragmentado que não há tempo nem espaços comuns (de escritores e artistas), pois os artistas também circulam noutras esferas, as das galerias e das exposições. Não o digo sequer com nostalgia, mas constato-o. Talvez isso faça declinar essa relação.
– Palavra Comum: Que perspectiva tens sobre a cultura galega e sua vinculação com a Lusofonia? Que achas das relações existentes e para onde consideras que se devem/podem dirigir?
– Maria João Cantinho: Infelizmente conheço poucos escritores da Galiza e gostaria de conhecer mais. Houve um encontro em que participei, onde conheci óptimos poetas, mas são momentos tão breves que não chegam para cimentar uma relação forte, que precisa de mais tempo. Mas tenho muitos amigos que circulam muito bem na Galiza e o contrário também se verifica. Veja-se o caso do Festival das Raias, de Luís Serguilha, por exemplo. Nós temos uma cultura muito próxima, uma língua irmã, todas as condições para desenvolver parcerias e espaços/tempos comuns, o que é sempre maravilhoso e louvável. Com a Lusofonia é mais complicado. Não sou descrente da Lusofonia e tenho apostado muito na dignificação dessa relação, sem subserviências ou artificialismos, mas é muito difícil uma aproximação de todos os países. Tenho uma forte relação com o Brasil, por exemplo, mas repara, é uma parte ínfima do Brasil, mais ligada ao Rio de Janeiro e à Amazónia (e não é toda, mas Belém do Pará). É uma ilusão pensarmos que chegamos a todo o lado. Chegamos onde podemos…
– Palavra Comum: Qual é a tua opinião sobre a literatura portuguesa a dia de hoje?
– Maria João Cantinho: Creio que a poesia portuguesa, por exemplo, está florescente. Há uma geração de jovens poetas a desenhar-se, de grande qualidade. E muita coisa a acontecer aí, entre tertúlias, pequenas editoras (que vivem com dificuldades enormes para se aguentarem, mas que vão publicando coisas muito boas). Essas, para além das outras já conhecidas, de qualidade. Como é natural, os poetas mais jovens publicam nas pequenas editoras e os autores mais conhecidos nas grandes editoras. Nem tudo é bom, evidentemente, e o tempo fará o seu trabalho de distinguir o trigo do joio. Não quero ser injusta para os autores e por isso evito nomear aqueles de que mais gosto. Tenho um profundo respeito pelo trabalho de quem escreve, mesmo por aqueles de que não gosto, porque muitas vezes é matéria de gosto, mais subjectiva. E há mesmo muita coisa boa na poesia.
Na ficção, confesso que tenho mais dificuldade em gostar do que se está a fazer. E creio que não conheço tão bem a ficção que se faz hoje. Temos grandes escritores de uma geração menos jovem como Hélia Correia, Helder Macedo, Mário de Carvalho, Rui Nunes, Teolinda Gersão, Mário Cláudio, Jaime Rocha, António Cabrita, etc. mas há autores mais jovens que têm estado a marcar o panorama literário como Gonçalo M. Tavares, Paulo José Miranda, Alexandre Andrade, Bruno Vieira Amaral, Isabel Maria Figueiredo, Ana Margarida de Carvalho, Valério Romão, entre muitos outros que me falta nomear aqui. Há um autor que me agrada muito e quem ninguém fala: Helder G. Cancela, por exemplo, e que acho magnífico. As obras dele não chegam aos jornais, por razões que desconheço.
É muito difícil julgar o que é bom (ou o que acho bom), como te digo é o tempo que deve julgar.
– Palavra Comum: Que projectos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?
– Maria João Cantinho: Sei lá! Os que o tempo me deixar. Para já dois livros (um de ensaio e outro de ficção). Que estão na calha, como se costuma dizer. Depois sou editora de uma revista, a Caliban, que precisa da minha atenção. Faço o que posso. Nunca desejo muito, mas tenho sempre projectos. E conhecer melhor os autores galegos faz parte desses projectos (risos).
NOTA: a fotografia foi realizada na entrega do Prémio Glória de Sant’Anna.
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