– Palavra Comum: Que é para ti a poesia?
– Alice Macedo Campos: Uma roupa que me serve como uma segunda pele, embora também um elemento estranho, como se de repente me chegasse fogo à mão, e não houvesse outra água a não ser essa, ou então um acidente, a privação de um membro ou a sensação que um órgão trabalha fora do corpo, acontece mesmo, ao coração sobretudo, observo-o imparável, e apuro o resultado dessa contemplação.
– Palavra Comum: Como entendes (e levas adiante, no teu caso) o processo de criação artística?
– Alice Macedo Campos: Acordo e penso a palavra do que sou e sinto que o meu nome tem de se completar ao longo do dia, que está oco pela manhã, vai ter de receber luz de alguém. Então, viro-me completamente para os outros, toco quem me rodeia, peço às minhas mãos para lerem a pele de quem toco, pergunto aos sentidos o que existe que ainda não foi dito, e tento levar o meu próprio desejo a responder.
– Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deveria ser- a relação entre as diversas artes (literatura, fotografia, música, artes plásticas, etc.)? Tens experiências, neste sentido?
– Alice Macedo Campos: A arte é um só corpo. Naturalmente que, para quem escreve, a literatura será o cérebro. No fundo, escrever é exercitar esse músculo. No entanto, só a presença de outras artes permite que haja, na execução desse processo, uma emoção. Escrevo sempre a ouvir música, nomeadamente o fado e o Carlos do Carmo, a sua voz abre portas interiores, tem um efeito crepuscular. Procuro imagens à escala de alimento, a fotografia ou a pintura, são a fonte do meu trabalho, aonde vou esculpir.
– Palavra Comum: Quais são os teus referentes criativos (num sentido amplo)?
– Alice Macedo Campos: A minha família. As minhas memórias. Estabeleço com frequência elos de ligação entre situações presentes e outras que recordo, procurando uni-las no tempo. Leio muitos policiais, sou fascinada por intrigas e dramas psicológicos. Tenho uma sensibilidade exponencial, falo com desconhecidos, acredito que errar é fundamental, que tenho de errar, e erro com o propósito de melhorar o erro.
– Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das obras com a sociedade, etc.) estimas interessantes para a criação literária e cultural hoje?
– Alice Macedo Campos: No meu entender, a arte devia ocupar um lugar central na vida social. Estamos rodeados de lixo, na rua há publicidade que podia ser substituída por citações literárias. O meu ideal seria encontrar nos jardins esculturas com o formato de livro, páginas de cimento com citações inscritas. E ler placares electrónicos que anunciassem exposições, concertos. Usar a arte como forma de dialogar, de unir.
– Palavra Comum: Que perspectiva tens sobre a Galiza e a cultura galega em relação à Lusofonia?
– Alice Macedo Campos: O poder da palavra só se manifesta através da leitura ou da oralidade. A riqueza de idiomas e de dialectos permite mascarar a mesma palavra de várias personalidades. O que acontece quando a palavra é transformada é semelhante ao que acontece ao escritor quando a transforma. Penso a espiral de palavras em torno do escritor, os sons que emitem, e acredito numa única voz ibérica.
– Palavra Comum: Qual é a tua opinião sobre a literatura e cultura portuguesa em geral a dia de hoje?
– Alice Macedo Campos: Tem-se desenvolvido um padrão redundante, a maioria dos escritores mais lidos são jornalistas ou apresentadores de televisão. Ora, isso nada tem que ver com literatura. O valor de um texto não se mede pela pessoa que o escreve, há gente muito competente noutras áreas a escrever muito mal, e pessoas francamente más de carácter a escrever muito bem. O ego é um monstro a abater.
– Palavra Comum: Que vínculos existem, do teu ponto de vista, entre Arte(s) e Vida(s)?
– Alice Macedo Campos: Uma é o olhar da outra.
– Palavra Comum: Que projectos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?
– Alice Macedo Campos: Gostava de realizar um filme com os meus poemas por argumento.
***
POEMAS
*
Um dia, o corpo retira-se à altura da minha estupefacção.
Agora, tens de o lavar, anda, esfrega-o bem, não deixes nenhuma
palavra a circular. Duvido da limpeza, se passar o dedo, ainda me obrigam
a comer o pó com a língua. O pó é o pão de quem não sabe escrever, sai da boca da
mulher-a-dias. Propõe-se então limpar com igual desvelo a mobília antiga e comparar o resultado.
A casa respira melhor ao aproximar-se de mim uma sombra, que especula em redor o ofício da pontuação.
*
Corrente do poema péssimo:
Inclino o corpo para o lado do naufrágio e embarco no texto sem armas.
Não tenho do que me gabar, há quem se faça ao mar, eu faço-me ao livro.
Procuro uma árvore que respire debaixo de água, até ser possível. Creio num
lugar sem homens, atravessado por leite das nuvens. Passo a quem o flutuar.
*
Por este lado, chegar mais perto do inadiável, seguir a linha costeira da ilha humana.
Abrir o corpo como um livro, na parte do descobrimento, e perceber que o rosto coexiste
com buracos negros, já foi intervencionado pela dor, não sobra inocência. Acreditar que há
um homem através de quem se pode entrar no conhecimento, que a sua existência é o próprio
templo onde nascem os dias submersos. Encontrar na margem uma árvore fisicamente igual, com
os mesmos lagos superficiais, os olhos vivos e acabados. Sentir que a sua presença se dilata, que uma
arte emocional dissolve a sabedoria, e que tudo, à excepção do homem infinito, tende para o zero negativo.
(Dedico ao Vítor Neves)
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