Marília Miranda Lopes nasceu no Porto, a 22 de Maio de 1969. Formou-se em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade da cidade onde nasceu.
É professora prossionalizada de Língua Portuguesa do Ensino Secundário e formadora pelo Conselho Cientíco-Pedagógico de Formação Contínua nas áreas das Didácticas Especícas e das Ocinas de Escrita – Poesia e Teatro. Foi bolseira dos Serviços de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian, ao abrigo do programa “Dramaturgia Portuguesa”. É autora de canções para a infância que integram vários projectos de animação do livro e da leitura, apresentados em auditórios, bibliotecas e escolas.
Escreveu “Framboesas” (Teatro, 1996), “Geometria ” (poesia, 1998), “O Escudo Invisível” (conto da antologia “Histórias Tiradas da Gaveta ” edições Tellus); “Maria da Silva, pastora e rainha” ( peça ainda inédita, representada pela Filandorra-Teatro do Nordeste; 2002); “O Reino Verde de Buttery” (Conto inédito dramatizado pela Filandorra, em 1996) “Templo” (poesia, colecção Tellus, nº 10; 2003); “Duendouro” Era uma vez um rio (Teatro, 2007 – Edições Afrontamento – livro incluído no Plano Nacional de Leitura), “Aqua” (conto, 2012 – incluído na antologia Pegadas com autores portugueses e espanhóis – de A Porta Verde do Sétimo Andar), “Castas” (Poesia, 2012 – Cadernos Q de Vien de A Porta Verde do Sétimo Andar – Galiza, Espanha), e “Victorianas” (Poesia, 2015. Labirinto de Letras). Tem participado, com poesia, ficção e crítica literária, e algumas revistas e antologias (Portugal, Espanha, África e Brasil). [Via Wook]
– Palavra Comum: Que é para ti a literatura (a poesia, nomeadamente)?
– Marília Lopes: Em alguns livros que tenho escrito, defino o indefinível, ou melhor, faço exercícios no sentido de designar a (ir)realidade poética. No livro “Geometria” (1998) escrevi assim: ”a poesia estrutura-se, pois, na interpretação de uma arquitectura astral – geometria que geometriza a própria poesia. Na sequência desta possibilidade de interpretação e de definição, a poesia poderá constituir uma conjugação de palavras que o caos “ordena” dentro e fora de quem a julga escrever. Nesta linha de pensamento, em múltiplas dimensões, o mesmo texto poderá admitir diferentes possibilidades, à semelhança do que acontece com os eventos que ali ocorram.
Em outro livro, o “Templo”, escrevo que a poesia é uma forma de expressão espacial e uma forma de arte cósmica. Neste sentido, continuo a associá-la a um lugar desconhecido e extraterrestre, no qual tudo é possível e inesperadamente espantoso. A arte cósmica não existe, e, como tal, é ainda perfeita, utópica o suficiente para que aconteçam nessa esfera os melhores poemas hologrâmicos.
Há um verso do poema “Armazém” que se encontra no “Castas” e que refere: “a inteireza do espaço desabitado/brutalmente expandida”: essa inteireza é também, para mim, a poesia, na qual o poeta tem a sensação de ser armazenador dessa estranha e bela singularidade.
No último livro de poesia que escrevi, “Victorianas”, concluo, por último, que “a poesia é rigorosamente um mistério e misteriosamente um rigor”. Aqui, não pretendo de todo a arrogância de uma certeza, mas o traço firme que captei no momento, vindo de um lugar desconhecido, e que pintou a frase tal qual a lemos. Acerca deste pensamento, o que quis transmitir coincidiu com a ideia de que, além de existir um terreno por desbravar, de onde podem e devem brotar novas vozes, novas escritas, preexiste uma arte poética – de tradição greco-latina – que não devemos ignorar. O mencionado rigor passa, assim, pela noção da procura de uma escrita depurada, para que a qualidade lhe seja meritoriamente conferida: em suma, uma escrita ática.
– Palavra Comum: Como entendes (e levas adiante, no teu caso) o processo de criação artística?
– Marília Lopes: Não sou uma pessoa metódica ou organizada, mas talvez tenha um mínimo exigido para que possa tomar nota do que me vai poeticamente acontecendo. O processo da escrita é um compromisso com os ecos. Quando os ouço, com cuidado os traduzo com os teclados mentais em mim disponíveis, procurando para tal o papel. Prefiro sempre este material fantástico ao computador vulgar ou ao telemóvel inteligente. A escrita é também um ritual que conjuga outros sentidos, como o cheiro e o tacto. O contacto com objectos amistosos, como a caneta de escrita líquida e fácil – de preferência preta -, e a forma como se vão formando pequenos textos ou esboços de poesia ou prosa nos blocos pequenos e médios que vou colecionando (por causa deste ofício) são para mim uma preciosa ajuda ou uma forma de estabelecer as pontes de que tanto gosto: passagens entre o irreal e o real, entre o abstrato e o concreto, entre o indizível e a expressão escrita. Esta expressão traduz o processo criativo da escrita que acontece com a minha pessoa, unicamente quando me encontro destituída de racionalidade. A razão, vinda necessariamente à posteriori, poderá degradar o que surge despido ou cru. Por vezes, nas correcções ou alterações que faço, tais como suprimir frases ou acrescentar outras, poderei errar. No seguimento desta fase, segue-se uma espécie de crença de que dispomos de uma voz crítica, autorreguladora. Aqui admito sempre a expressão “ou talvez não”. No entanto, avanço numa determinada ordenação ou definição que no momento me parece ser a mais indicada. Assim se constroem os livros. Quando os fechamos, antes de serem publicados, tem-se a sensação de que há uma hora que marca a conclusão, o fecho do universo que ele abre e encerra, ao mesmo tempo.
– Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deveria ser- a relação entre as diversas artes (literatura, fotografia, música, artes plásticas, etc.)?
– Marília Lopes: A relação entre as diversas artes conjuga-se com a multidisciplinaridade que subjaz ao artista completo. Há aspectos transversais que as perpassam, tais como a sensibilidade, a apreciação estética, a comunicação, a procura. Assim, penso que as mesmas deverão estar sempre próximas e dialogantes, já que se complementam num sentido mais amplo. Considero salutar até que se criem festivais que, ao contrário do que actualmente sucede, possam integrar um leque variado e prolífero de manifestações artísticas, promovendo, dessa forma, a aproximação tão necessária das mesmas.
– Palavra Comum: Quais são os teus referentes criativos (num sentido amplo)?
– Marília Lopes: Os meus referentes criativos relacionam-se com uma extensa lista que não cabe aqui. Imagine o que seria nomear uns e não outros, se todos abraçaram a bela Procura? É evidente que há destaques, em cada século, de personalidades incontornáveis que, de forma extraordinária, marcaram a Mudança, provocaram ruturas com o estabelecido e avançaram numa direcção diferente, senão única. O que eu penso ser de maior importância, no que concerne às tais referências, é o cunho pessoal que ensina às próximas gerações que cada indivíduo tem em si um potencial criativo impressionante, característica essa tantas vezes negligenciada por sociedades que limitam o Homem, condicionando-o a constituir-se a si mesmo uma máquina de produção, reprodutora de um sistema que enaltece valores contrários àqueles que valorizam a livre expressão do ser humano, em todos os sentidos.
– Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das obras com a sociedade, etc.) estimas interessantes para a criação literária e cultural hoje?
– Marília Lopes: Acho sempre interessantes os caminhos por desbravar nessa comunicação da arte com a sociedade. É evidente que há dificuldades em ser-se inovador, mas o desafio constante é o fundamental para que ocorra Mudança. As novas tecnologias devem constituir-se portais interessantes para a transformação. Se, de um lado, dispomos dessas ferramentas cada vez mais eficazes, no que diz respeito à rapidez e à simultaneidade com que se propagam mensagens e publicações de variada índole e de vários géneros literários, por outro lado – e não menos a ter em conta – está a organicidade, a beleza do manufacturado, a singularidade da edição. Os dois meios abrem, pois, grandes possibilidades e poderão satisfazer as expectativas de variadíssimas formas de estar na Arte e na Vida. Poderemos optar, de acordo com a performance que quisermos experimentar, por uma via ou outra, e ainda por uma terceira ou uma quarta via. A problemática das formas de publicação/divulgação prende-se, com o maior ou menor grau de preocupação, em fazer chegar as obras aos destinatários que constituem, como é habitual dizer-se, “o público-alvo”. Ora, pode haver gente que queira ser “arqueiro”, e outra que não. Nenhuma forma de chegar ao destinatário, desde que seja honesta, legítima e criteriosa, é a melhor, mas, mais uma vez, uma das possibilidades.
– Palavra Comum: Que vínculos existem, do teu ponto de vista, entre Arte(s) e Vida(s)?
– Marília Lopes: Entre a Arte e a Vida, penso que existem vínculos indissociáveis, assentes na experiência que temos da existência. É habitual que a Arte reflita a vida, mas também que constitua uma reflexão sobre a mesma. Também se considera possível e muito importante que a Arte possa transgredir a realidade, elevando-a, tornando-a sublime e inolvidável. Quando tal acontece, o mundo transforma-se. Assim, entendo a Arte como processo avassalador constante que tende a provocar fendas para construir outra coisa, “Coisa” essa que arruína estruturas, tidas como certas ou exemplares, para edificar novos percursos. De alguma forma, a Arte deve rumar-nos a um sítio desconhecido, sem que tenha nenhuma obrigação nessa tendência, mas que constitua um estímulo, sem o qual o ser humano perde o seu sentido mais verdadeiro.
– Palavra Comum: Que projectos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?
– Marília Lopes: O meu projecto é, simplesmente, ter tempo livre: para que o mesmo sirva para escrever (seja em prosa ou em verso); para que nunca me esqueça do sentido que me foi dado a conhecer pela existência (que é tão breve); para plantar algumas ervas aromáticas e rosas no jardim; para contemplar o céu e o mar, as criaturas terrestres, marinhas e celestes e os seres humanos incríveis que vou conhecendo, com maior ou menor proximidade afectiva; para compor canções e cantá-las, a solo ou em banda, para escutar o vento e os murmúrios do universo que nos fez, ao mesmo tempo, tão grandes e pequenos; e para valorizar sempre, na prática, as palavras “Amor”, “Compaixão”, “Justiça”, “Paz” e “Liberdade”.
***
Poema de Victorianas
Elas escreviam à máquina na minha cabeça
A meio da noite, acordava com teclados
martelares contínuos. que quereis, perguntava
Não me diziam. amuavam nos seus olhos baixos
Transportavam-me na melodia mecânica dos corpos
Seria percussão no que insistiam? porque não me
deixavam
no sono?
Victorianas, queriam bicicletas, deixar desmaios
romper urbes
firmar gaivotas.
Hoje escrevo com o arquivo delas na garganta
Não me engasgo com enciclopédias de enxovais
Regurgito as formas que me trazem vagabunda na
estrada
no romper de caminhos
Imberbe de pranto, ensurdeço. que mudas vós gritais
Que sempre fechados genitais
ao corpo deles, inquietos.
Brame a flâmula. sou de vidro ainda cedo. as tardes
são cálidas nuvens chovendo cíclicas inspirações
Transpiro. vindes calar-me, agora sei: calar com o som
determinado a auscultar
o meu próprio batimento
Tremulamente me levanto da cama
onde pousam combinações de outrora
Rendadas me trazeis nas mãos. sinto-as na boca fechada
O meu silêncio é a vossa chama. um não dizer que bateis
sobre a secretária antiga.
You might also like
More from Entrevistas
Tocar na palavra de forma viva | Sobre «Câmara de ar», de Hirondina Joshua
Câmara de ar (douda correria, 2023) é o último livro de Hirondina Joshua. Da Palavra Comum tivemos a honra de …
Tono Galán expus na Corunha | Alfredo J. Ferreiro
Tono Galán (A Corunha, 1967) é um artista corunhês muito polifacético que, embora se esteja agora a dedicar fundamentalmente à …