– Palavra Comum: Que supõe para ti a literatura?
– Raquel Miragaia: A literatura foi e é para mim uma búsqueda. Mas também muitas outras cousas.
Imagino que cada pessoa tem a sua maneira de encontrar uma certa trascendência no mundo, uma maneira de viver além das relações exclusivamente materiais. Para muitos é a religião ou o compromisso social… para mim é a arte em geral, a natureza e os vínculos de amor com as pessoas. Creio que há poucas cousas na vida que te fazem sentir que o mundo tem sentido, que a existência é algo além desse tempo limitado e desse corpo limitado em que transitamos. A mim a vida natural e a emoção artísticas e amorosa são as cousas que me conectam com essa espiritualidade.
Mas também tem sido uma ajuda para conviver com as crueldades da existência e do ser humano, aquilo que me reconcilia com uma espécie tão predadora quanto à nossa. E, por suposto, uma aprendizagem.
– Palavra Comum: Como entendes o processo de criação literária -e artística, em geral-?
– Raquel Miragaia: Creio que não o entendo. Comigo funciona de formas diferentes, às vezes sinto que chega um flash à minha mente, uma imagem que acaba tornando-se um texto. Outras tenho um esqueleto de uma história que sinto vontade de contar, e vou trabalhando como formiguinha até que esse esqueleto se transforma num corpo complexo. Mas muitas vezes tenho a sensação de que não depende de mim, polo menos não totalmente, que é um impulso que não podo conter.
Claro que isso é só a parte mais gozosa da criação, a da ideia, do começo, da tensão. Mas depois vem a parte mais difícil, que é a parte técnica, a de depurar, a de ler e reler até ter uma certa consciência de se aquilo serve de algo ou não. Essa é a parte que mais sufro, porque sempre fico muito insegura com o texto.
– Palavra Comum: Qual consideras que é -ou poderia ser- a relação entre a literatura e o outras artes? Tens experiências neste sentido?
– Raquel Miragaia: O estranho é que não houvesse nenhum tipo de relação entre as artes. Afinal todas tenhem em comum a vontade de transcendência, de comunicação espiritual, por assim dizer. Depois que se materialize numa ou outra forma de expressão é indiferente. Em qualquer época da história que estudemos existe esse relacionamento contínuo.
E eu sempre tive a sorte de relacionar-me com pessoas que também precisam da expressão artística, e que algumas delas quiseram trabalhar comigo. O meu primeiro livro foi publicado com fotografias de Luz Castro, o segundo com ilustrações de Mauro Trastoy, o terceiro saiu em uma colecção denominada “O lapis do taberneiro” da taberna O 13, em Santiago; no lançamento houvo música e performance de Carlos Santiago. Também trabalhei criando textos para ilustrações ou fotos de outras pessoas, criei um texto a partir duma obra de Mauro Trastoy e outro a partir de uma obra de Mónica Montero P., também fiz um texto para apresentar uma exposição do fotográfo Miguel Muñiz… Então sim, tive muitas experiências nesse sentido e espero seguir trabalhando desta forma.
– Palavra Comum: Quais são os teus referentes (num sentido amplo)?
– Raquel Miragaia: A questão dos referentes é sempre muito difícil, sempre acabas por falar de aquilo que estás lendo ou com o que estás preocupada no momento actual. De forma muito geral, sempre me senti muito identificada com as literaturas que trabalham o realismo mágico, seja esse chamado da forma que for. Então, muita da literatura que leio e li tem essa componente, literatura lusófona africana e brasileira, literatura galega com essas raízes, literatura clássica…
Não consigo colocar só uns nomes porque mudam muito as minhas leituras. Estive muito fascinada durante a adolescência e a primeira juventude por Julio Cortázar, e parecia que só existia ele, li quase tudo dele. Passei uma fase também de fascinação de Pepetela quando comecei a ler literatura africana e também li quase toda a sua obra, depois entrei um pouco no mundo da literatura brasileira e li incansavelmente a Jorge Amado, Guimarães Rosa, Machado de Assis e Clarice Lispector. Houvo um momento Álvaro Cunqueiro em que li todos os seus contos. Tive a época de fascinação por Jane Austen, e depois foi Virgínia Woolf. Também aconteceu com Carson McCullers. Impressionei-me muitíssimo com Doris Lessing e também fiquei um tempo lendo só livros dela…
E isso é só do que lembro sem fazer muito esforço. Por isso, não posso falar de uns referentes muito nítidos, há um movimento contínuo que tem a ver com o momento vital, com o que estão lendo as pessoas ao meu lado, com muitas variantes.
– Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das suas criações à sociedade, etc.) estimas interessantes para a literatura, e quaisquer outras artes?
– Raquel Miragaia: Bem, não sou especialista da teoria da literatura ou da arte, não sei dizer que caminhos estéticos são bons, ruins ou regulares… Mas sim acho que o único caminho possível é o da honestidade. Parece uma cousa quase banal, falar da honestidade na arte, como na vida; mas para mim é fulcral.
É verdade que há debates muito acesos sobre questões periféricas como a importância das novas tecnologias na criação, mas não deixa de ser só uma ferramenta. Não consigo entender os discursos que colocam no centro questões que não são fundamentais, argumentos do tipo “na literatura galega faz falta o romance da cidade”, “falta escrever um romance só com mensagens do whatsapp”… O primeiro é ter algo que contar, se falha isso, não interessa o arriscado ou inovador que seja o teu texto.
– Palavra Comum: Que perspetiva tens sobre o estado da língua e a cultura, e que conexões -reais ou potenciais- encontras com outros espaços culturais (nomeadamente a Lusofonia)?
– Raquel Miragaia: Sempre fum bastante optimista neste aspecto, mas devo reconhecer que por vezes o meu optimismo fica difícil. Como em outros aspectos da sociedade, estou sentindo certo retrocesso também no estado da língua e da cultura. De repente voltamos a ver nos meios discursos sobre a língua que pareciam já esquecidos. Aquilo de que o galego não serve pra qualquer cousa, de que a cultura galega estava muito subvencionada… Creio que os termos do debate não mudaram em nada. Enquanto não se consiga ver a língua e a cultura como um bem mais dos bens sociais, não creio que a situação melhore. Se continuamos a achar que a cultura está “subvencionada” e com a indústria automobilística fazemos “política”, pois não creio que superemos as dificuldades óbvias de uma língua e cultura limitadas. Se é bastante óbvio pra todo o mundo que se devem fazer políticas sociais polo bem da comunidade, não entendo porque não se pode aceitar que se devem fazer políticas culturais no bem dessa mesma comunidade.
Quanto às relações com a lusofonia acho que são ainda muito insuficientes. É verdade que cada vez é mais fácil para nós aceder aos espaços lusófonos, mas sempre acabam sendo espaços reduzidos de pessoas com um perfil muito específico. Falta uma verdadeira política de colocar-nos no espaço ao que pertencemos, sem falsas mitologias mas sim com uma afirmação clara de quem somos. Creio que é muito mais importante do que o debate sobre norma com “ñ”/ norma com “nh”, colocar-nos num ou noutro espaço cultural e identitário muda por completo desde as questões mais quotidianas (que jornal lemos, de onde procuramos a previsão do clima, que versão de software instalamos…) até a própria forma de entender o mundo e relacionar-nos com ele.
– Palavra Comum: Fala-nos da tua experiência em Através Editora…
– Raquel Miragaia: A Através é uma editorial à que lhe tenho muito carinho e com a que vou estar vinculada enquanto exista. Durante uns anos pertenci ao conselho editorial, neste momento já não faço parte dele por questões de tempo exclusivamente. A sintonia e o trabalho com a equipa da Através sempre foi total.
O trabalho foi muito gratificante, mas sempre me senti em falta porque a equipa da Através tem uma capacidade de trabalho incrível. Sempre é bom ver desde dentro como funcionam as cousas porque percebes a dificuldade que supõe fazer um trabalho colaborativo, em uma editora que é de uma associação e em que quase todo o trabalho se faz de forma voluntária. Ainda hoje me surpreende como é possível que sigam saindo publicações tão boas e em edições cuidadas com os recursos não de uma grande empresa mas de uma associação. É um enorme mérito. Aliás, o catálogo da Através está ficando cada vez mais interessante.
– Palavra Comum: Trabalhas como docente no ensino. Que opinas da sua situação, em especial no referido ao ensino da literatura? Para onde gostarias que caminhasse?
– Raquel Miragaia: Estou num momento em que todo o referido ao ensino me produz bastante tristeza. Trabalho no ensino público, neste momento em fase de transição de lei educativa (e já vão quatro nos meus 15 anos de trabalho) e tenho a sensação de que neste debate a formação do alunado nunca é o mais importante. Mudamos os conteúdos, os tipos de provas aos que devem enfrentar-se e os nomes com que chamamos aos conceitos pedagógicos; mas o que subjaz é sempre o mesmo. Parece que ninguém sabe que fazer com o ensino, é como um prato muito saboroso mas muito quente, é bom mexer de cara ao eleitorado mas sem aprofundar, ficar só na superfície.
Pra começar gostava de que a organização puramente administrativa fosse diferente, que a maneira de acceder à docência fosse diferente, que a formação recebida por nós, professoras e professores, fosse diferente… Mas também gostava de que a organização temporal e espacial mudasse. Não faz mais sentido pra mim ter aulas de 50 minutos, completamente desconectadas entre si, em uma sala de aula em que entre 25-30 pessoas se sentam em filas para escutar o que uma única pessoa fala desde o púlpito. Do meu ponto de vista seguimos centrando-nos demais nos conteúdos (acessíveis hoje em dia de forma rápida e eficaz) e pouco no processo de aprendizagem. Escutamo-nos pouco entre nós e escutamos pouco ao alunado. Para mim na escola deveríamos interagir mais, tanto entre professoras como com o alunado e o alunado entre si. Todas temos experiências do muito que se aprende em contextos diversos, com pessoas com diferentes talentos, caracteres, métodos… Pois não faz sentido que na escola seja diferente.
Como é óbvio não tenho muitas seguranças, ao contrário. Mas estou certa de que não estamos no bom caminho.
– Palavra Comum: Que perspetiva tens sobre o feminismo?
– Raquel Miragaia: O feminismo está em processo. É a grande revolução que está por terminar. Não acho possível esta nossa sociedade sem feminismo e quem afirmar o contrário não creio que esteja agindo de boa fé. Tomara que pudéssemos viver em uma sociedade sem feminismo, isso significaria que vivíamos em igualdade. Desafortunadamente isso não é assim.
Há que ter em conta que o feminismo é um movimento do que todo o mundo fala mas pouca gente conhece bem. Há todo um aparelho teórico em torno do tema, há muitas correntes ideológicas dentro do feminismo, há tratados filosóficos e científicos sobre o feminismo. E toda uma corrente de conhecimento que não se tem em conta precisamente por viver em uma sociedade como a que vivemos.
Mas é também uma prática diária, uma prática ao alcance de todas as pessoas, mas que requer um esforço, posto que todas fomos educadas em uma sociedade patriarcal e isso não é inócuo. Ao igual que fomos educadas no racismo e no despreço ao diferente e temos que trabalhar dia a dia para não ser escravas dessa educação.
O feminismo é, sobretudo, imprescindível.
– Palavra Comum: Como seria a tua Galiza Imaginária? Que partes dessa Galiza existem já, do teu ponto de vista?
– Raquel Miragaia: Galiza tem muitos dos elementos que colocaria no meu mundo imaginário, tem uma natureza incrível e uma energia muito forte também. Afortunadamente, a industrialização foi tão pequena que não nos deu tempo a destroçá-la de tudo (embora os destroços são mais do que suficientes). Uma das cousas que mais saudável me parece deste nosso país é o vínculo com a terra, por muitas gerações que passem há um apego pola terra que, além de ter algumas consequências negativas, creio que nos fai menos vulneráveis a este estranha época do mundo em que vivemos.
Mas também devo dizer que há muitas cousas ainda para conseguir o meu “paraíso”, gostava de viver num mundo mais aberto e solidário. Um mundo em que fóssemos capazes de olhar além de nós mesmos, de entender o pouquinha cousa que somos em termos de universo, a nossa pouca importância. O que mais acho em falta é a compaixão polo outro (seja qual for a espécie).
– Palavra Comum: Que projetos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?
– Raquel Miragaia: Falando de literatura, estou escrevendo um eterno romance que gostava de terminar algum dia. Nem sei se para publicar, mas já quase como um desafio pessoal. Talvez seja uma bobagem porque nem todo o mundo está pronto pra escrever um romance, mas a verdade é que gostava finalizar esse projecto em algum momento da minha vida.
Do ponto de vista pessoal, só gostava de seguir aprendendo e, sobretudo, aprender a ser cada vez melhor pessoa e chegar à morte sem peso.
– Palavra Comum: Que achas de Palavra Comum e que gostarias de ver também aqui?
– Raquel Miragaia: Creio que é muito importante que existam projectos como a Palavra Comum e pessoas com a disposição de mantê-lo actualizado. Cada vez há menos espaços para o pensamento, para a expressão artística, para o intercâmbio de ideias… de aí a importância de revistas como estas.
Talvez gostasse de ver também, além de entrevistas, debates entre várias pessoas ao redor de assuntos variados. Ou por dizer de outra maneira, entrevistas múltiplas. Sempre acho interessante como as conversas fazem derivar os assuntos e ajudam a pensar.
NOTA: a fotografia publicada nesta entrevista foi realizada por Maria Lojo.
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