– Palavra Comum: Que é para ti a literatura?
– Teresa Moure: Uma forma de expressão artística sem alto investimento. Se tivesse dinheiro seria escultora; se tivesse ainda mais dinheiro preferiria dirigir filmes…. Também é uma forma de digerir a realidade, de suportar o sofrimento da existência. Psico-análise de baixo custo. Vou vendo que o da economia tem bastante a ver com o meu pendor para a literatura…
– Palavra Comum: Como entendes (e praticas, no teu caso) o processo de criação literária -e artística, em geral-?
– Teresa Moure: Normalmente sabemos pouco do processo de criação, onde intervêm, junto às propostas estéticas ou ideologias, também as feridas que arrastamos… Digamos que quando uma ideia me persegue durante um tempo –uma personagem, uma história–, quando aparece reiteradamente, torna para mim matéria literária. E essa matéria, obsessiva, à medida que a trabalho com palavras, desdramatiza-se e visa conseguir a forma dum videoclipe mental que depois só tenho que transcrever. A criação apenas consiste, portanto, em fazer uma massagem à ideia. O interessante é que esse processo serve para amaciar-me por dentro.
– Palavra Comum: Qual consideras que é -ou poderia ser- a relação entre a literatura e o outras artes?
– Teresa Moure: Não distingo bem as caixas. Uma escultura conta uma história. Um roteiro cinematográfico também. Ou, ao revés, um poema pode ser apenas uma faísca, como uma fotografia. A literatura é apenas uma das formas de criar que temos ao nosso dispor. Evidentemente, há pessoas criativas que demonstram o seu pulo artístico nas formas geométricas da sua horta ou na gastronomia que cozinham. O meu não são as caixas.
– Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das obras à sociedade, etc.) estimas interessantes para a literatura, e quaisquer outras artes?
– Teresa Moure: Depois de séculos de inovações e ruturas, de fazermos tópico hoje o que ontem era ousado, todos os caminhos estão abertos. Cada vez que conseguimos estremecer outras pessoas com o que fazemos estamos a experimentar um caminho que se abre como novo, que nunca transitáramos assim dantes. Cada ato criativo acontece performativamente: tem lugar num tempo e num espaço e dinamita tudo o anterior. Se não, não seria criativo.
– Palavra Comum: Que opinião tens sobre o sistema literário galego a dia de hoje?
– Teresa Moure: A literatura galega, de finais do século XIX até hoje, é um produto de resistência contra-cultural, um projeto coletivo que define o nós galego frente ao poder do espanhol. Por isso, embora a marginalização da língua nas estruturas de poder, a literatura galega tem-se revelado como original e poliédrica: pense-se na ferocidade de Blanco-Amor frente ao contexto da literatura realista espanhola do seu tempo ou, mais atrás, na radical modernidade de Rosalia de Castro frente ao Romanticismo Hispano. A dia de hoje a literatura galega continua a ser, em boa medida, uma arma para a resistência, e para a dissidência. Nesse sentido, o principal perigo é o da castração. Se a língua não conquistar espaços sociais dinâmicos e reais, se não passar efetivamente à seguinte geração, o risco é vir a dar num território domesticado, que ocupe espaços educativos de formação –o género infantil e juvenil mais ou menos doutrinal, leituras para os liceus, com temas apropriados e pouca extensão–. Porém, entendo que o conjunto de escritores e escritoras temos ao nosso favor o facto de estarmos a nos identificar com uma língua desprestigiada, o que nos torna em ativistas sociais. Não estou a falar simplesmente da literatura “de compromisso”, mas de algo mais elementar: num momento de crise da objetividade e das verdades únicas, a literatura numa língua acossada pelo poder produz uma condição de subalternidade que é, em si própria criativa. É uma forma de “negritude”, de exclusão, como o foram o Black Power ou o movimento Queer. Também como eles, corre o risco de se acomodar e atraiçoar as origens.
– Palavra Comum: Que perspetiva tens sobre o estado da língua e a cultura galegas, e que conexões -reais ou potenciais- encontras com outros espaços culturais (nomeadamente a Lusofonia)?
– Teresa Moure: As perspetivas sobre a língua e a cultura galegas podem ser focadas de diferentes pontos de vista. Visto que a língua tem sérios problemas de subsistência, tudo levaria a pensar num projeto “regional”, auto-centrado, que perderia energia num futuro imediato, visto que não responderia à vitalidade real do idioma em franca queda: um produto, portanto, fictício, mantido como ilusão. Acho que esse é um dos motivos que explicam a necessidade de escrevermos numa norma de galego internacional. A possibilidade de sermos compreendid@s e valorad@s além das fronteiras do estado implica uma dose de energia, de auto-estima. Não esqueçamos que as revistas literárias espanholas ou os suplementos culturais de jornais de grande impacto como El País ou ABC não incluem novidades editoriais escritas noutras línguas diferentes do espanhol. Se lá em Madrid não nos querem ver, é lógico dirigir o olhar a espaços mas amplos, a uma certa mestiçagem cultural. Aliás, escrever em galego internacional permite reencontrar-nos com usos linguísticos, com expressões tradicionais que simplesmente foram varridas do uso habitual pela convivência com o espanhol.
– Palavra Comum: Quais são os teus referentes (num sentido amplo)?
– Teresa Moure: Nem sei bem o que é um referente. Alguém que admiro talvez? Nesse caso, a lista seria enorme porque há infinidade de criador@s coerentes ou sugestiv@s e porque sou leitora voraz. Mas, às vezes, quando se nos pergunta pelos referentes, espera-se que digamos os nomes de autores que lemos com devoção, mesmo se não partilhamos estilo ou ideologia com eles. Se penso no que primeiro vêm à minha cabeça, devo dizer que adoro Foucault, mas também Alejandra Pizarnik ou Audur Ólafsdottir. Não são parecidos nem remotamente, mas um é filósofo, outra poeta e a última narradora. Adoro também as novelas russas do XIX, as de Tolstoi ou Dostoievsky, mas também Pepetela, ou Coetzee, que não têm nada a ver, ou uma punk como Virginie Despentes. Isso não significa que me tenham influído. E como toda leitora impenitente sempre espero que a seguinte obra seja o melhor que tenho lido.
– Palavra Comum: Trabalhas no ensino universitário. Que opinas da sua situação? Para onde achas que deveria caminhar?
– Teresa Moure: A universidade hoje é uma instituição caduca, afastada da realidade e preste a vender-se ao capital. Provavelmente foi sempre assim, um instrumento das elites para se perpetuarem, mas hoje vivemos péssimos momentos. A dificuldade maior consiste em transmitir o entusiasmo pelo conhecimento, essa janela que nos desloca além da realidade imediata, a um estudantado que está, logicamente, desiludido, que sabe que o seu futuro, incerto, passa por uma realidade laboral precarizada. A universidade deveria ser um espaço criativo, capaz de desenvolver mentes críticas, blindado contra a burocracia e as grisalhas reputações, um mecanismo que garantisse a possibilidade de se abrir passo o diálogo, a dialética, que associasse a ideia de prazer à conversação entretida, ao desfrute das ideias. O jardim de Epicuro. A receita machadiana de amor e pedagogia. As experiências de educação libertária. O extermínio do exame com o seu enfrentamento entre sucesso e fracasso. Algo disso.
– Palavra Comum: Que perspetiva tens sobre o(s) feminismo(s)?
– Teresa Moure: Os feminismos constituíram no último século uma força de enorme massa crítica. Nada das nossas vidas escapou à sua crítica e, nesse sentido, o pensamento e o ativismo feministas podem e devem ser reivindicados para além de militâncias particulares. Interessam-me especialmente as perspetivas da economia feminista e a valoração dos cuidados como modelo ético e anti-capitalista. Mas também acho fontes de inspiração em muitas das propostas artísticas, das Guerrilla Girls às Abramovic, Ana Mendieta ou Adrian Piper que relacionam o “feminino” com outras questões políticas, como a raça, a classe ou a pertença a minorias ideológicas ou sociais. O perigo, no caso dos feminismos, está em resistir ao risco de institucionalização –que torna a “igualdade” num paradigma necessário em vez de reivindicar o florescimento das diferenças– e, dentro do ativismo de rua, em resistir à prática das políticas de “olho por olho”, que acabam por culpabilizar todos os homens como cúmplices do patriarcado. Para resistir como movimento criativo e dinâmico, os feminismos têm de continuar a ser subversivos, a alçar-se contra o poder, mas implicando os homens. Todo movimento político precisa ter aliados fora do seu círculo imediato e, neste caso, a necessidade incrementa-se porque o movimento em defesa das mulheres é um movimento com pulo ético, que os homens transformadores sabem aceitar.
– Palavra Comum: Fala-nos da tua valoração sobre o decrescentismo…
– Teresa Moure: Neste momento histórico parece evidente que temos trespassado os limites: não se pode crescer ilimitadamente num planeta finito. Os abusos do capitalismo, o consumismo que se instalou nas nossas vidas como uma fonte de satisfações efémeras só podem ser combatidos se decidimos coletivamente auto-controlar-nos e moderar os excessos contra a natureza. A meu ver, o decrescimento, assumido habitualmente como uma posição anarquista, com partidários que atuam individualmente e que não vão condicionar as decisões dos amos do mundo, é uma perspetiva imprescindível para complementar qualquer ideologia transformadora. Como se vem alertando nos últimos anos, esta perspetiva vai ser de obrigado cumprimento porque os recursos do planeta estão a esgotar-se mas acho que estaria preste a defender as vantagens do decrescimento além dessa realidade inapelável, como uma necessidade de completar os direitos de felicidade dos seres humanos com os direitos doutras espécies vivas e da natureza em geral. Só a propaganda religiosa pode defender a existência dum planeta ao serviço do ser humano. Se somos a espécie mais racional ou inteligente do planeta, devemos demonstrar essa “superioridade” comportando-nos como irmãos maiores que protegem outros seres indefesos, não como alguém que usurpa à natureza a sua riqueza para explorar e arrasar quanto encontra ao seu passo.
– Palavra Comum: Como seria a tua Galiza Imaginária? Que partes dessa Galiza existem já, do teu ponto de vista?
– Teresa Moure: Um território soberano e livre do dente do capital. Um país que fizesse bandeira da justiça social, a liberdade e a criatividade. Temos uma paisagem devastada, uma história contraditória e uma sociedade invadida pelo medo mas, no entanto, também temos muita gente com grande capacidade crítica –mesmo às vezes de mais–, organizada, por exemplo, em grupos que defendem a língua ou a cultura, que lutam cada dia por suster maneiras diferentes de ver a realidade. Na comparação imediata com outras sociedades, conseguimos manter no tempo diversos movimentos de resistência tendo tudo à contra.
– Palavra Comum: Que projetos tens e quais gostarias de chegar a desenvolver?
– Teresa Moure: Tenho uma lista imensa de projetos, artísticos, políticos e pessoais… Acho que sou do tipo de pessoa que iria a um bombardeamento com tal de evitar a rotina e o tédio. Se vivemos quatro dias temos que deixar-nos as unhas em que esses dias sejam plenos e mereçam ser lembrados, não? Por isso, para escapar da roda de moinho que nos engole e nos mutila, que nos deixa sem forças, há que inventar cada dia três ou quatro mil projetos. E, logicamente, com esta efervescência imprescindível, sou das que querem desenvolvê-los todos. Absolutamente!
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