– Palavra Comum: Que é para ti a literatura? E a fotografia?
– Vítor Vaqueiro: A literatura, como a fotografia, como qualquer outro meio de expressão cultural, são, do meu ponto de vista, dispositivos de compreensão do mundo, da realidade. Partilho nisto um ponto de vista que J. A. Valente —um dos poetas, ao meu ver, fundamentais— explicitara há já muitos anos, no seu ensaio Las palabras de la tribu, um texto de há quase meio século. Nesse volume, o poeta ourensão propõe a ideia de serem ciência e poesia duas formas complementares de achegamento à realidade, baseadas as duas em aspetos tais como a elaboração de hipóteses ou a intuição. Não deixa de ser significativo o feito de que, no ensaio que cito, Valente se refira às palavras de Auden a respeito da produção poética: “Como posso conhecer o que penso até que não vejo o que digo?” e que essas palavras se achem em relação com as pronunciadas polo fotógrafo norte-americano Garry Winogrand: “Fotografo para descobrir qual será o aspecto de algo uma vez fotografado”.
– Palavra Comum: Como entendes o processo de criação artística, em geral?
– Vítor Vaqueiro: Pergunta complexa esta. Penso que, em qualquer processo de produção Poética (e, ao dizer Poética, com maiúscula, refiro-me a processos que vaiam além da estrita poesia), o desejável é enunciar o Novo, para o qual seria, por sua vez, preciso estabelecer um discurso poético, artístico, que fosse quem de romper os registros simbólico e imaginário atuais. Ou o que é o mesmo, elaborar um novo paradigma artístico. Isto, que, ao dizê-lo, fica muito bem, não é fácil ou, séndomos mais precisos, é muito difícil, em primeiro lugar pola própria dificuldade em enunciar o novo e, em segundo, polo rejeitamento que qualquer proposta nova gera por parte da estética dominante. Ora, que seja difícil não quer dizer que não se deva procurar. Essa novidade deveria atingir quer a forma (não é precisamente maravilhoso seguir a escrever romances ignorando as novas achegas produzidas, por exemplo, no século XX, ponhamos Rayuela, A Morte de Vergílio, Paradiso ou Correção, por dizer os primeiros exemplos que chegam à minha lembrança), quer os conteúdos, nomeando o que por costume não se nomeia.
– Palavra Comum: Qual consideras que é a relação -ou qual deveria ser- entre as diversas artes (literatura, música, artes plásticas, teatro, audiovisual, etc.)? Que experiências tens, neste sentido?
– Vítor Vaqueiro: Penso que a relação entre as artes assenta em grande medida na subjetividade da pessoa que desenvolve cada uma delas. Haverá pessoas partidárias de ações de tendência unidisciplinar e haverá quem seja partidária de visões mais multidisciplinares. Suponho que a perspectiva que cada quem adote tem muito a ver com a sua própria visão do mundo, com considerar que o que compre é a análise dos fatores que se acham arredor duma determinada disciplina ou que, às avessas, resulta de interesse explorar os pontos de contato entre diferentes artes, a maneira de levar a cabo “traduções” duma arte a outra, de, em resumo, explorar a transversalidade, se existir, no campo das artes. Se calhar pola minha formação, devedora da ciência, sou partidário da segunda via, da exploração de possibilidades de diferentes modos de expressão, não só dentro do âmbito das artes, mas também, e isso acho-o fundamental, na pesquisa das relações entre a ciência e o que normalmente chamamos as humanidades, como tem acontecido nos encontros levados a cabo no CGAC há quase duas décadas, Conectando criações. Ciência-Tecnologia-Literatura-Arte, ou, mais recentemente no projeto Neuston. Ciência & Arte.
– Palavra Comum: Como consideras que se combinam -ou se deveriam combinar- arte(s) e Vida?
– Vítor Vaqueiro: Numa sociedade como a que vivemos, pendente de maneira essencial da produção econômica e do consumo, a relação entre arte(s) e vida é muito deficiente. Pensa que a metade da população não lê nada nunca, que o 80% do que se lê é romance e são as mulheres as que consomem o 70-80% dessa produção. Pensa na escassa assistência a salas de cinema, a exposições, a conferências, enfim, a múltiplas atividades culturais. Como se deveriam combinar, perguntas-me, arte e vida? Em certa maneira, já contestei essa questão há um bocado, quando começamos esta conversa. A arte é, ao meu ver, o mesmo que a ciência ou a política (refiro-me à política no seu sentido mais profundo, não ao que estamos afeitos a considerar como tal cousa) uma ferramenta de compreensão e análise do mundo que nos rodeia e não deveria ver-se baixo uma perspectiva elitista, mas como um elemento mais da vida que contribuísse à melhora da mesma.
– Palavra Comum: Que referentes tens no teu trabalho criativo e em geral, num sentido amplo?
– Vítor Vaqueiro: Entendo que a tua pergunta abrange vários tipos de referentes: em primeiro lugar deveria considerar os denominados referentes de compromisso ético e estético referidos a um país, a Galiza, e a sua língua, o galego; obviamente, o feito de escrever em galego supõe já uma posição de compromisso com uma cultura e com a sua forma de expressão escrita; ademais, existe outro tipo de compromisso com os aspetos, chamemos-lhes formais, da língua, quer dizer, a construção dum idioma o mais limpo possível, o menos infetado polo espanhol e o mais achegado ao nosso tronco comum galego-português; neste mesmo território deveria considerar a questão que se refere ao estilo, norteado, para mim, no intento de enunciação do novo duma maneira nova, cousa que não sempre se pode conseguir; estão, aliás, os referentes de natureza solidária com dous conjuntos de vetores: os que atingem os valores mais positivos da identidade galega, com a conseguinte depuração dos negativos, e os que se dirigem cara a universalidade, como são as ideias de justiça, liberdade, solidariedade ou igualdade; e finalmente estão os nomes das pessoas que, duma maneira ou outra, influem na minha atividade. Essas são, no âmbito da literatura, Álvaro Cunqueiro, Jorge Luis Borges, José Ángel Valente, Méndez Ferrín ou os narradores de expressão alemã, como Botho Strauss, Peter Handke, Elfriede Jelinek, Sebald ou Thomas Bernhard. No que atinge a fotografia, as e os autorretratistas, como, por sinalar apenas três nomes, Cindy Sherman, Claude Cahun ou Ugo Mulas.
– Palavra Comum: Que perspectiva tens sobre a língua e a cultura galegas (e os vínculos com a Lusofonia e outros espaços culturais)?
– Vítor Vaqueiro: Eu acho que a língua e a cultura galega não são, em essência, muito diferentes do que a língua e a cultura em qualquer outro país da nossa contorna. Penso que a maioria do que se produz é prescindível por reiterativo, redundante ou de escasso interesse, o mesmo que ocorre na cultura espanhola, na francesa, na norte-americana ou na pertencente a qualquer outro país homologável ao nosso. Podemos afirmar que a cultura espanhola gera produtos de grande difusão e de ínfimo interesse, sendo mínimos os nomes que estão a trabalhar no processo de compreensão do mundo, de enunciação do novo ou de ultrapassar caminhos já tripados. Vejamos um caso, Pérez Reverte, um escritor de grande sucesso, cuja obra cai das mãos, e que, porém, inça as livrarias e as salas de cinema, desenvolvendo uma literatura que, quase século e meio mais tarde, lança obras mui inferiores a alguns romances do seu mesmo gênero do século XIX. Devemos compreender que o momento atual, entendendo por tal, praticamente o último meio século, vive uma época de crise. Mas ao dizer crise não me refiro ao que se pensa por regra: crise econômica. A crise, ao meu ver, é muito mais que isso, é uma crise política, social, cultural, estética, de valores, uma crise que semelha enunciar a fim dum ciclo e que toca valores como a produção artística, a criatividade, a capacidade de renova, o avanço. Isso está a ferir intensamente, entre outras muitas facetas, o trabalho e a ação cultural, vítimas também da situação.
No que se refere aos vínculos com a Lusofonia (que não sei se não se deveria começar a chamar galeguia, como se começa a propor desde o Brasil) acho que deveriam ser fortes, infinitamente mais fortes do que são na atualidade, porque sendo galego e português expressões dum mesmo idioma, tal achegamento suporia situar o galego num plano de universalidade, com as consequências que derivariam para as nossas língua e cultura.
– Palavra Comum: Qual é a tua visão sobre a literatura galega actual? Para onde consideras que deveria caminhar?
– Vítor Vaqueiro: Até certo ponto, a questão sobre a literatura poderia-se enquadrar dentro da reflexão anterior sobre a língua e a cultura. Como é evidente, no caso da cultura escrita, seja narrativa, poesia, teatro ou ensaio há que acrescentar o caso de estarmos a falar duma língua agredida, fator que não aparece em manifestações plásticas, como a pintura ou a fotografia, ou mesmo no caso da música. Do meu ponto de vista acho que, provavelmente, a literatura galega possui uma dependência excessiva do mundo do ensino, com o qual, é apenas uma suspeita, não sei se não se estará a produzir uma espécie de infantilização da nossa literatura. No que atinge a de por onde deveria caminhar, direi que eu não sou quem para opinar neste sentido, ainda que penso que deveria bifurcar-se em diferentes trajetórias, cousa que, infelizmente, penso que não se produz, ainda que devo dizer que essa pluralidade tampouco se acha mui presente noutras literaturas. E, finalmente, penso que existem poucas pessoas dedicadas à escrita que enfrentem um labor fundamental, como é a criação, a construção de idioma. Também é certo que a norma mal chamada oficial constitui uma peja importante nesse processo, achegando o galego ao espanhol, mostrando uma profunda tolerância com a entrada de castelhanismos e uma intransigência doente com a possível penetração do que chamam “lusismos”.
– Palavra Comum: Que projetos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?
– Vítor Vaqueiro: Os projetos são abundantes e gostaria chegar a desenvolver todos eles, mas, como compreenderás, o seu desenvolvimento não depende só de mim, mas do tempo que as minhas anatomia e fisiologia tenham pensado me conceder. Cingirei, portanto, a resposta à tua pergunta a aquilo no que trabalho arestora, que é um livro que não ouso definir como poesia e cujo título será 1968 e que constitui uma reflexão sobre acontecimentos cuja ocorrência sucedeu há quase meio século e cuja incidência marcou toda uma época. No que envolve Da identidade à norma é um projeto compartilhado com Nicolás Xamardo, galego e professor recém reformado da universidade basca, que, do ponto de vista da vulgarização e dirigido a pessoas não reintegracionistas, tenta pôr de manifesto o, como sinalei antes, processo de deterioro do idioma e como, nesse processo, a norma chamada oficial contribui a esse estrago. Também, como uma pessoa com escasso conhecimento do galego e mínimo rigor científico, como foi o professor Constantino Garcia, colheu nas suas mãos o andamento de padronização da nossa língua e rompeu um consenso histórico de pertença do galego ao âmbito da, chamemos-lhe assim, lusofonia, ajudando a achegar o nosso idioma ao espanhol, como hoje é mais que evidente, e contribuindo a enfraquecer a identidade galega.
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