– Palavra Comum: Que é para ti a literatura?
– André Domingues: A literatura, para mim, sempre foi um espaço de nudez; não absoluta, claro, mas inegociável. Não há literatura sem nudez. A nudez dos corpos, a nudez da vida, tantas vezes acalentada por uma tristeza lenta e delicada, mas também a nudez da alegria, a nudez dos mundos impensáveis, e a tremenda nudez do presente, do tempo em que vivemos, essa nudez terrível como Blake dizia ser a simetria do tigre.
– Palavra Comum: Como entendes (e levas a cabo, no teu caso) o processo de criação literária?
– André Domingues: Acredito que o momento de criação está disseminado. É, de facto, um processo que pode começar a qualquer altura, se bem que exige uma determinada predisposição mental, um anúncio, uma porta de entrada. Esses pontos de partida estão por todo o lado. O mundo é generoso; também a capacidade de o interrogarmos. No meu caso, esse processo é em parte natural, e em parte provocado. A leitura dos outros e do mundo dos outros é sempre o melhor modo de chegarmos a nós mesmos, à nossa fala.
– Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deveria ser- a relação entre a literatura e outras artes (música, fotografia, plástica, etc.)? Como são as tuas experiências neste sentido?
– André Domingues: As artes são libertinas (no melhor sentido do termo), e por isso praticam o amor livre entre elas, e a literatura não é excepção. E essa libertação é tanto maior quanto mais laços e pontes houver entre as artes, a literatura e a vida. A crónica que eu escrevo todos os meses para o Correio do Porto, por exemplo, dialoga com uma fotografia que, a par do que é dito no texto, amplia-lhe os sentidos. Também já escrevi muitos textos cujo ponto de partida foram exposições de pintura, individuais ou colectivas. As artes e a literatura, como acontece por vezes na natureza, criam relações de simbiose ou mutualismo.
– Palavra Comum: Quais são os teus referenciais (num sentido amplo)? Quais deles consideras não são suficientemente reconhecid@s -ainda-?
– André Domingues: Em primeiro lugar, gostava de dizer que os escritores que mais aprecio são sempre aqueles que preferem a frase ao parágrafo, a imagem surpreendente ao transporte linear, o trabalho da linguagem às fórmulas convencionais. Dito isto, posso avançar com alguns nomes: Nabokov, Fitzgerald, Arreola, Onetti, Cortázar, José Ángel Valente, Herberto Hélder, Cesariny, Eugénio de Andrade, Lobo Antunes, José Manuel Caballero Bonald, Antonio Gamoneda, Rilke, Paul Celan, John Cheever, e muitos outros. Todos estes que citei, apesar de parecem muito populares, ainda não têm o reconhecimento devido. A maior parte dos leitores prefere o lixo literário.
– Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, etc.) estimas interessantes para as artes, na sua comunicação com a sociedade a dia de hoje?
– André Domingues: Há autores que sabem sondar muito bem a sociedade contemporânea e, no fim, dão-nos não só um reflexo do mundo desastroso em que vivemos, mas também – e paradoxalmente – o encanto, a espada de uma prosa muito bem afiada e construída, cortante na sua inteligência estética e crítica. Estou a pensar, por exemplo, em Don Delillo. Os temas são sempre os mesmos. É, por isso, inevitável que as novas abordagens artísticas reflictam, de alguma forma, o impacto do avanço tecnológico, a degradação de certos conceitos e matizes, as novas vagas de desespero que nos assediam, o eterno confronto com a grande estranheza do outro.
– Palavra Comum: Que perspectiva tens sobre o estado da cultura e literatura portuguesas, em geral? Que experiências tens, neste sentido?
– André Domingues: Considero-me um leitor muito pouco português. A minha tradição é mais francesa, espanhola e hispano-americana. Sinto-me mais identificado com algumas vozes vizinhas (e a Galiza é uma delas). Nós, em Portugal, não tivemos um Quevedo, um Lope de Vega, um Cervantes, uma Geração de 27, com todos aqueles poetas magníficos que souberam civilizar o surrealismo e configurá-lo com um lirismo sem precedentes ou réplicas. Leio muito literatura espanhola, em espanhol, faço tradução e, nesse sentido, sinto que aquilo que escrevo está muito mais vinculado a essa tradição do que propriamente à minha. No entanto, acredito que os melhores autores portugueses foram sempre extraterritoriais. Escritores que não se conformaram com o que tinham no seu país.
– Palavra Comum: Que projectos tens e quais gostarias chegar a desenvolver nalgum momento?
– André Domingues: Talvez ainda antes do final do ano (2017), saia um livro de poemas, o meu primeiro livro de poesia, depois de ter escrito “Dramas de Companhia” (Companhia das Ilhas, 2016) que era sobretudo um pequeno volume de contos curtos e prosas poéticas de carácter irónico, fantástico e apocalíptico.
Este novo livro, que vai chamar-se “A tempestade das mãos”, é já um projecto muito diferente. É um livro com uma forte componente erótica, muito mais intimista. Espero, também em breve, terminar um livro de contos mais longos no qual tenho vindo a trabalhar de forma intermitente porque a falta de tempo é sempre um castigo.