– Palavra Comum: O que é para ti a arte?
– Nuno Mangas Viegas: Furtando-me a floreados académicos, importa-me dizer da arte aquilo que dela sinto, aquilo que é e como é em mim. A coisa sendo no que dela sinto. Seguindo esta linha, a arte é em mim uma forma (veículo para…) de continuar a ver e a descobrir – sentir e apre(e)nder – com um deslumbramento e um assombro novos. É em mim um espaço fértil para o sentir, para o experimentar, para o descobrir, para o compreender. A sua constante reinvenção, as conexões e intersecções que se vão erguendo entre os seus vários ramos, os seus motores de complexificação e simplificação constantes, sempre me fascinaram.
Que é um espaço de liberdades livres (parafraseando A. Ramos Rosa) é dado assente. Que é ela também uma forma de lidar com a morte (seja fuga, explicação ou pulsão – tânato (psic.) – para ela), não o nego. Mas acima de tudo, a arte é em mim – nos suportes em que me expresso – um processo, ad continuum, em que procuro entender e responder o meu ser perante a existência e esta perante mim.
Independentemente do suporte, ela é a tradução de toda a apreensão que faço do mundo, das coisas do mundo sucedendo, sucedidas ou por suceder. Em última instância, será sempre uma forma de validação da existência, potenciadora de aprendizagem, de descoberta e de explicação (ou assombro quando esta não surge).
– Palavra Comum: Como entendes o processo de criação artística?
– Nuno Mangas Viegas: Pensar o processo, ser no processo. Tudo está em processo para…
Aquilo que tem sido a minha criação baseia-se, acima de tudo, em exploração de processos sobre distintos suportes. Seja na escrita, seja na música com o João Sousa n’O Poema (A)Corda, seja na fotografia ou na pintura, tudo tem sido propor caminhos para a explicação possível das coisas em mim e de mim nas coisas.
Existe no que faço uma ideia que trespassa o erguer do processo, uma constante não-linear: a procura do mínimo. Procurar o mínimo significa exponenciar ao máximo a apreensão: reduzir o apreendido ao mínimo, aumentado a apreensão ao máximo. Procurar ser o mais microscópico possível em termos formais e de conteúdo. A busca da explosão, a não-contenção. O Jardim kantiano não é belo apenas porque cada uma de suas flores é bela. O Jardim é belo porque cada núcleo explode a sua vontade, o seu sonho, o seu milagre a cada novo dia. A explosão é bela. E ela dá-se no mínimo, no núcleo.
Se aplicado à linguagem, este foco visa captar a palavra mais simples, a palavra mais próxima ao conceito, a palavra mínima. Depois, encontrado um conjunto de termos mínimos, eles funcionarão como caminhos ou como ferramentas para a resolução do problema mínimo e da explicação que dele procuro retirar. Esses termos vão-se repetindo ao longo do texto, experienciando distintas funções sintácticas, reinventando-se (explodindo) a cada novo verso: fazendo com que o caminho para a resolução se vá encurtando, circularmente fechando.
Na pintura é mais árdua a explicação desta ideia. A razão é simples: a minha lidação com a pintura é de base mais mística e sensorial. Muitas vezes é uma tentativa de fuga ao intelecto: o corpo apenas como veículo de uma ideia. A pintura é uma área onde ainda não me consegui exprimir como desejo. O intelecto é bicho que se agarra firme, noto-o quando termino uma pintura, quando percebo áreas que reflectem a sua presença. Mas o processo geral (que é mínimo) também aqui se nota, neste escavar indagante pela voz criativa que procuro, pela resposta mínima ao problema mínimo.
Já na fotografia a “coisa” surge de dois modos distintos: há a abordagem “flâneurística” (não dissociável do voyeurismo), o deambular na multitude procurando deslumbramentos, procurando perspectivas novas para as coisas antigas do mundo, sem qualquer planificação. E há a abordagem mais ou menos projectada e estudada. Aqui, tendo a escrever tudo aquilo que me é possível sobre a ideia base, antes de pegar na máquina. Assemelha-se a receita de culinária: selecciono os ingredientes, anoto as quantidades e descrevo a sequência. E como qualquer outro apaixonado na matéria, deparo-me não poucas vezes com projectos que resultam em trezentas fotografias, das quais apenas quero cinco.
Em suma: no processo criativo, como é em mim entendido, há alguma constância no grosso dos vectores que sustentarão o corpo daquilo que é criado. Há uma questão que cresce, um problema, há a atribuição de uma “ideia” (conceito, o mais micro possível) a essa questão e depois traçam-se caminhos que, vindos de fora, permitam ir de encontro à “ideia”, perfurando-a. Desse embate soltam-se partículas de informação que contribuirão para a obtenção de respostas / soluções à questão prima. Nestes primeiros estágios produz-se algo em bruto (seja poema, pintura, fotografia…). Estaremos neste ponto a meio do processo. Daqui em diante entram em campo os mecanismos de depuração, a maceta e o ponteiro, a lupa e o bisturi. O resultado nem sempre é o mais belo texto (ou pintura, ou fotografia, etc.), mas é aquele que melhor consigo erguer para explicar minimalmente o dado elevado a tema. O processo em detrimento do resultado cintilante!
É uma confusão, dirão. E eu confirmo. A confusão é geradora. Em entropia, nada se dá ou cria.
– Palavra Comum: Como conjugas a interacção entre música, poesia e fotografia, no teu caso? Achas que são linguagens complementares ou exigem percursos diferenciados?
– Nuno Mangas Viegas: Andam em mim de mãos dadas. Sendo que a minha formação académica é precisamente na área dos Estudos Inter-artes, a ideia dos mecanismos de coligação e concomitância entre as várias artes é-me claramente querida e inevitável. Se o projecto O Poema (A)Corda (projecto simbiótico de poesia e música que desenvolvo com o João Sousa desde 2009) é disso o expoente mais visível, também nos âmbitos criativos mais recônditos essas relações se fazem sentir. São para mim exercícios constantes tanto a poesia ekfrástica (poesia que remete, seguindo graus de coincidência não lineares, para uma obra de arte visual – seja pictórica, escultórica ou arquitectónica – a referência a peças musicais já entra por outros campos, mas não deixa de entrar neste âmbito) como a poesia visual (que busco quer pelo lado da escrita e quer pelo lado da fotografia).
Contudo, experienciar cada uma delas exige mecanismos distintos em virtude da análoga diferença nos suportes. Se, como referi antes, procuro uma base comum ao nível dos processos, a espécie de resposta que pretendo no final será sempre distinta nas várias artes. Mas no fundo são sempre validações que se dão em mim feitas coisas.
– Palavra Comum: Como se combinam -ou se deveriam combinar- arte(s) e Vida?
– Nuno Mangas Viegas: Se as tentativas de definição do conceito de arte esbarram já, mesclando-se e transmutando-se, com os conceitos de vida e de natureza, a forma como ela é encarada pelo artista ainda mais se confundem nele umas e outras. Tento viver o mais que posso (dentro dos limites do saudável, que não sei quais são) em estado de arte. Ou seja, vivendo em procura de deslumbramento, de experimentação, de compreensão.
A arte é a expressão (mais ou menos intelectualizada) dos medos, dos anseios, dos sonhos, das crenças. Quando aplicada a um povo, ela é a sua identidade feita coisa. Compreendermo-nos exige compreender o antes de nós, o em redor de nós, o dentro e o fora de nós. A arte é ‘conditio sine qua non’ para este entendimento.
Depois, a arte é também ela educação, também ela terapia. A discussão sobre a parca aplicabilidade prática da arte há muito que deixou, em determinados campos, de fazer sentido. Isto para dizer que entendo concomitantes, arte e vida.
– Palavra Comum: Que referentes tens no teu trabalho criativo (dum ponto de vista amplo)?
– Nuno Mangas Viegas: Eu sou tudo o que vivi. Sou a minha aprendizagem. Na escrita sou devedor de inúmeras vozes, oriundas de distintos géneros literários. Apontando alguns apenas como ponto de partida para outros, diria Albert Camus, Dostoievski, Baudelaire, Artaud, Vergílio Ferreira, Carlos de Oliveira, Beckett, Herberto Hélder, Al Berto, A. Franco Alexandre, entre tantos outros nomes. Na filosofia, Wittgenstein e Deleuze têm-me abanado imenso alguns alicerces. Na pintura, e pela magnífica atenção teórica que demonstrou, admiro Kandinsky. Mas foi Rothko quem mais me influenciou. Foi, a meu ver, o pintor que mais fundo ousou penetrar. Tinha um projecto de simplificação, um ideário de atenção mínima. Experienciou a pintura em todos os sentidos, e depois das Black Paintings para a Houston Chapel, tudo estava dito, a elipse cumprira-se.
Também o cinema trabalha em mim a suas influências. Realizadores como Lars Von Trier, Kurosawa, Lynch, Fincher, Jeunet, Kubrick, entre tantos outros, têm-me ajudado imenso no erguer de ideias e de processos criativos.
– Palavra Comum: Que caminhos entendes necessários para transitarem as artes hoje, nomeadamente na comunicação com o público e a sociedade?
– Nuno Mangas Viegas: Entendo a arte, o estar em “estado de arte”, como um lugar de contacto, de diálogo, de comunicação, um estar em conexão com…
Não entendo que o “macro-cosmos Arte” tenha de se chegar mais para aqui ou mais para ali para se aproximar disto ou afastar-se daquilo. A Sociologia da Arte ocupa-se destas linhas de contacto entre Arte e Sociedade, partindo sempre desta ideia de comunicação e interligação. As constantes metamorfoses da sociedade vão encontrando eco contínuo nas artes, e vice-versa. Inequívoco é o facto de a arte ter influenciado grandes e importantes mudanças de paradigma no mundo, veja-se a título de exemplo todo o século XX. A arte também é revolução, a arte compreende a diferença, a possibilidade outra. O Homem precisa disso, por mais mecanizada que esteja uma sociedade (ou quão mais o esteja). Digamos apenas que Arte e o Social actuam entre si reciprocamente. São inextricáveis.
A internet, enquanto fenómeno globalizado de comunicação, tem cumprido um papel largamente importante, quer na partilha e na divulgação, quer no horizonte de possibilidades que abre à criação, actuando assim directamente na própria evolução da arte.
– Palavra Comum: Que opinião tens sobre as relações entre a Lusofonia e a Galiza? Tens experiências neste sentido?
– Nuno Mangas Viegas: Sim, é tema que acompanho há alguns anos, principalmente após ter conhecido o companheiro Alberto Pombo em 2010, quando foi meu professor de História e Cultura Galegas na Faculdade de Filosofia e Letras de Cáceres, Extremadura. Aos poucos, eu e o João Sousa (colega de curso e d’O Poema (A)Corda) começámos a introduzir este tema nos concertos que demos pela Extremadura. Depois, em 2011, estivemos um mês na Galiza, vivendo em Arteixo e tirando um curso de verão de Língua e Cultura Galega na Universidade da Corunha. Durante este período foi-nos possível testemunhar in loco a realidade do país: os conflitos linguísticos e culturais, as uniões e desuniões existentes, a luta e a tensão constantes da e na Galiza. Considero ridículo o não reconhecimento (ainda) da Galiza enquanto membro da Lusofonia, erro este que facilmente seria desbloqueado e justificado quer pela via histórica per se, quer pela via linguística. Mas há tantas e tantas coisas que considero ridículas naquilo a que chamamos Lusofonia, ou melhor: CPLP. Mas considero que o principal problema da Galiza está no seu interior. Enquanto houver o estigma de falar galego nas principais cidades (na Corunha – não em todas as zonas, felizmente – sentimos na pele esse facto), enquanto se mantiverem as medidas politicamente amigáveis ao estado central, não é tanto a ainda não inclusão oficial da Galiza na Lusofonia o verdadeiro problema, ainda que a ideia dos filhos que não querem abrir a porta à mãe me pareça surreal.
Deixo, em baixo, a conexão para uma entrevista que demos (O Poema (A)Corda) ao Diário Liberdade em 2011, na qual nos alongámos um pouco mais sobre o tema.
– Palavra Comum: Que projetos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?
– Nuno Mangas Viegas: Neste momento continuo com o projecto O Poema (A)Corda, juntamente com o companheiro da palavra e gigante músico, João Sousa. Depois dos trabalhos “Mãos… poesia lo-fi” e de “O Deserto”, estamos já, calmamente, preparando material novo. Na escrita, tenho o desejo de lançar este ano o meu primeiro livro. Desde 2008 que venho publicando em revistas e jornais, pelo que creio vir chegando a hora do livro. Na fotografia, e no seguimento do labor espelhado na página O Pára.quedas de Ícaro, gostaria de preparar, este ano ainda, uma exposição e um trabalho em formato físico de fotografia e poesia.
Continuamos igualmente com o colectivo editorial e criativo A Besta (link 5), onde organizámos no passado dia 25 de Janeiro a primeira tarde/noite de mostra de projectos do colectivo, em parceria com a Associação Terapêutica do Ruído. Contamos, daqui a um par de meses, repetir a ideia já com alguns projectos e trabalhos novos.
No geral, vontade e ideias não faltam. Continuaremos por aí, criando e partilhando com que nos reserve atenção.
– Palavra Comum: Que achas da Palavra Comum? Que gostarias de ver também aqui?
– Nuno Mangas Viegas: Fiquei muito contente quando tomei conhecimento e contacto com a Palavra Comum. Agrada-me sobretudo a forma como é dada expressão às várias vertentes artísticas, colocando-as em contacto e em diálogo permanente. Sendo eu um apaixonado pelo cinema e pelo teatro, apenas teria esse desejo de ver estes ramos artísticos contemplados, mas sei bem o que envolveria cobrir também estas áreas.
Espero e desejo continuar a frequentar este espaço, tanto passiva como activamente. Um forte abraço e os meus parabéns pelo trabalho! Que essa chama jamais se apague!
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