– Palavra Comum: Que é para ti a história?
– Carlos Velasco Souto: Para mim a história é antes de mais um saber, um conhecimento mais ou menos documentado da evoluçom das sociedades humanas ao longo do tempo. Ora, quando considerada nesta sua dimensom de ciência, entendo que a história é também umha arma para a mudança ou transformaçom social. Toda a minha prática da disciplina histórica enquanto que profissional da mesma, ao longo de mais de trinta anos, é indissociável desta conceçom dela como alavanca para a construçom de umha sociedade melhor, mais justa e igualitária. E desde que som umha pessoa de formaçom marxista, encontro no materialismo histórico a teoria a fornecer um arsenal de ferramentas analíticas mais completo e acaído para o ofício de historiador.
De tudo isto desprende-se, já que logo, que de modo nenhum concebo o conhecimento histórico como um mero saber especulativo, para além do prazer inteletual que esse conhecimento por si mesmo me poda produzir, mas como um esforço por desentranhar racionalmente os mecanismos explicativos de umha sociedade determinada —a sociedade do capitalismo serôdio por sinal, visto que sou contemporaneísta— com mentes de contribuir à açom coletiva contra ela. Análise da realidade social concreta, pois, de mao dada com açom social transformadora, que diriam os clássicos.
– Palavra Comum: Como levas a cabo, no teu caso, o processo de investigação e trabalho arredor da história?
– Carlos Velasco Souto: No meu caso desenvolvo o labor como historiador em dous planos: o docente e o investigador. O primeiro, como é óbvio, pom o foco na divulgaçom ou transmissom do conhecimento histórico aos estudantes do ciclo superior, quer dizer universitário, na Universidade da Corunha (UDC). O segundo alicerça-se na localizaçom, consulta e e interpretaçom de documentaçom de diverso tipo, seja ela custodiada em arquivos, seja de procedência hemerográfica, em suporte audiovisual ou tirada de repertórios bibliográficos, sem descuidar a fonte oral. Umha vez processada toda essa informaçom, o passo seguinte é a elaboraçom de trabalhos de índole científica com vistas à sua publicaçom e subsequente difusom. Isto último pode-se fazer em formato mais erudito (dirigido preferentemente a outros colegas de profissom e, portanto, provido do correspondente aparelho crítico de citações, notas a rodapé e referências bibliográficas consoante os parámetros académicos ao uso), ou em formato divulgativo, com linguagem menos críptica e bem mais digerível para um público amplo. Nom raramente, um acaba por tentar harmonizar ambos os formatos a fim de exibir um mínimo rigor académico que nom empeça a exequibilidade do texto para leitores nom iniciados, ou seja, para o cidadao comum e corrente. Pois que um estudo de história incompreensível para a maioria dificilmente pode (embora haja exceções) esclarecer consciências para a mudança social.
– Palavra Comum: Quais são os teus referentes como historiador (desde todos os pontos de vista)? Deles, quais reivindicarias por serem insuficientemente reconhecidos a dia de hoje?
– Carlos Velasco Souto: Os meus referentes como historiador som fundamentalmente as figuras representativas do que um dia se chamou de paradigma da história total: gente como Fontana, Pierre Vilar, Ciro Cardoso, Soboul…, mormente marxistas mas também integrados em correntes como Annales ou próximos a ela (Duby, Le Goff, Braudel…) Umha influência decisiva na minha formaçom tivérom assim mesmo os representantes da história do radicalismo popular e o movimento operário, também conhecida como história desde abaixo na sua versom mais requintada, a do materialismo histórico britânico: os Thompson, Hobsbawm, Hill, Rudé…, a quem acrescentaria, para Espanha, a figura precursora de Tuñón de Lara. A este respeito, conceitos como o de economia moral dos pobres, acunhada por E. P. Thompson, e a estreita articulaçom classe-consciência de classe-luita de classes proposta por este autor e os seus colegas de escola (bem como as armas dos fracos, de J. Scott) subjazem largamente nos meus trabalhos sobre os movimentos sociais rurais (do século XIX) e urbanos (do XX) na Galiza.
Os estudos de análise e pesquisa sobre o imperialismo (Lenine, Samir Amín, Wallerstein, Amílcar Cabral, Guevara) e as formulações da dialética centro-periferia mais a teoria da dependência (Teotônio dos Santos, Gunder Frank, Vidal Villa) som outro dos esteios basilares da minha formaçom inteletual e como profissional da história. Aliás, nos últimos anos tenho acompanhado com grande interesse a evoluçom da história agrária de orientaçom ecológica e/ou ambiental (González de Molina, Naredo, Garrabou, Robledo).
Um autor de que gosto especialmente, no que aos estudos sobre naçom e nacionalismo (e mais questões) diz respeito é o austro-brasileiro afincado em París Michael Löwy, traduzido do francês para o galego (com pouquíssimo êxito mesmo entre os nacionalistas, polo que paga a pena reivindicar entre nós a riqueza do seu pensamento) polo Beiras, ele mesmo um referente incontornável, junto com o Moncho Lôpez-Suevos, no tocante à afixaçom das categorias concetuais da dependência da formaçom social galega a respeito da dinâmica do capitalismo mundial.
Finalmente, umha outra corrente de pensamento sem a qual nom seria inteligível o historiador e cidadao consciente que pretendo ser é o racionalismo de raiz kantiana e irrenunciavelmente comunista do par Manuel Sacristán/Giulia Adinolfi e a sua escola (Fernández Buey, Toni Domènech, Joaquim Sempere, Jorge Riechmann…) artelhada em torno da revista barcelonesa Mientras Tanto.
Enfim, cuido que esses som no essencial os meus mestres e referentes crítico-inteletuais mais sobranceiros, salvo possível omissom involuntária. Um mundo quase exclusivo de homens, infelizmente, por mais que existam exceções relevantes: A. D. Lublinskaia (historiadora-economista), Reyna Pastor de Togneri (medievalista) ou Mary Nash (historiadora da perspetiva de género): mais umha manifestaçom, ao cabo, das dificuldades que estruturalmente acompanhárom a plena inserçom da inteletualidade feminina na primeira linha do pensamento universal.
Ah! E tudo isto sem esquecer alguns mestres de nosso, isto é, da universidade galega de quem, em distinta proporçom, aprendim a pensar com cabeça própria e aos que devo, também, levar inoculado para sempre o vírus da ânsia por saber: Ramón Villares, Carlos Alonso del Real, José Carlos Bermejo Barrera ou José Manuel Vázquez Varela Coco, cujos nomes consigno aqui com eterna dívida de gratitude por mais que, em certos aspetos, podamos navegar hoje por galáxias ideológico-inteletuais bem distantes.
– Palavra Comum: Como vês o estudo da história em Galiza? Que parte da sua história recente achas menos conhecida para o público?
– Carlos Velasco Souto: Nom tem dúvida que o estudo e o conhecimento da história na Galiza tenhem experimentado um pulo ou salto de gigante nos últimos quarenta anos, quer dizer, do fim da ditadura para acá. O labor de pesquisa desenvolvido nos departamentos universitários a conta tanto de professores do quadro funcionarial, quanto de sucessivas turmas de entusiastas investigadores em formaçom, tem dado fruitos inimagináveis no início da década de setenta, e mesmo na sua metade, quando eu me incorporei como aluno à universidade. Acrescente-se a isso a maior e mais racional dotaçom orçamentária, umha mais eficaz organizaçom dos departamentos e o fomento da investigaçom noutras instâncias específicas, públicas ou privadas, dentro e fora do estrito âmbito académico. O resultado foi, em qualquer caso, um alargamento impressionante do conhecimento e umha bem maior, mália que ainda insuficiente, divulgaçom do mesmo.
Ora, dentro desse esforço divulgativo nem todos os períodos se vírom favorecidos por igual. A melhor parte levou-na decerto a época contemporânea (se calhar por ser a mais próxima à experiência de vida do público) e, dentro dela, é o século XX autêntico privilegiado, de resto infinitamente mais e melhor investigado do que o XIX.
Olha, a propósito do público leitor dá-se na Galiza umha situaçom bem curiosa, abofé. Contrariamente ao que acontece noutras latitudes, no nosso país existe umha ânsia apreciável por conhecer o nosso passado, nomeadamente o passado recente. De tal jeito que isto tem aliciado e contribuído a sustentar iniciativas editoriais com o foco posto na história, caso das monografias avulsas e coleções promovidas por editoras como A Nosa Terra (hoje extinta), Xerais, Laiovento, TresCTres, Sotelo Blanco ou Difusora de Letras, entre outras, ou mesmo por serviços de publicações universitários. Isto pujo-se muito especialmente de manifesto com o galho da declaraçom institucional de 2006 como Ano da Memória e o ronsel de atividades desenvolvidas em torno dele visando a recuperaçom da nossa memória histórica democrática. Por ironias do destino, quando em muitos países da esfera ocidental se estava a produzir o encerramento, umha atrás de outra, de conhecidas editoriais especializadas em ciências sociais (ou a sua absorçom por grupos monopolistas com orientaçom diferente), aqui as nossas modestas editoras seguiam o seu percurso a bom ritmo, ao compasso dessa inusitada demanda social de um setor crescente, embora minoritário, do nosso público leitor. Porém, a situaçom parece ter-se invertido nos últimos tempos e hoje a publicaçom de trabalhos de pesquisa histórica volta a topar com dificuldades. Sem ir mais longe, quem vos fala —como tantos outros autores— tivo que pôr dinheiro enriba da mesa para poder editar os seus dous últimos livros. Assim é que estám as cousas.
Seja como for, e pondo de parte os estudos de história contemporânea, as publicações sobre outros períodos da nossa história som bem mais escassas e difíceis de colocar no mercado editorial. Nom poderia afirmar qual dos períodos seja o mais desfavorecido pola fortuna e, já que logo, desconhecido polo público. Pode que a história da antiguidade (ao menos a pré-história vê-se afagada polo interesse levantado polo celtismo e mais a cultura castreja), mas nom podo saber direito.
– Palavra Comum: Como historiador, que vínculos achas entre a história de Galiza e a de outros espaços (nomeadamente Portugal, Brasil, etc.)? Quais deles permanecem ainda ocultos para as maiorias sociais?
– Carlos Velasco Souto: Entendo a história de Portugal e Brasil em grande medida como umha projeçom de nosso. Foi aquí que nasceu a língua hoje internacionalmente conhecida como português e, portanto, a lusofonia. Mas nom é só a língua em si mesma, com origem no galego-português medieval, como a psicologia coletiva e a visom de mundo que ela encerra e exprime e que me fam sentir muito mais à-vontade, muito mais eu quando estou nessas latitudes que quando estou em Castela ou noutro povo peninsular, cujas culturas igualmente aprecio e amo mas julgo nom serem a nossa.
Aprofundando nesta ideia cuido que, desgraçadamente, é a prática totalidade dos vínculos histórico-culturais entre a Galiza e o mundo lusófono que é desconhecida para as maiorias sociais do país. Absolutamente desconhecida. E nom adianta fazermos manifestações retóricas acerca da raia e cultura compartilhadas, das afinidades com o “povo irmao” e mais lérias ao uso desde que, gostemos ou nom, somos duas realidades de costas viradas. Boa prova disso é a nula interaçom entre o imaginário cultural/identitário de ambas as beiras da fronteira comum, apesar do incessante transitar de galegos para Portugal e vice-versa e por muito Ponte nas Ondas ou Lei Paz Andrade que haja e houver. Como também o é a impermeabilidade da imensa maioria dos galego-falantes face às soluções linguísticas do português na hora de melhorarem o seu galego (inclusive quando muitas dessas soluções nom som mais que formas galegas autôctonas hoje esquecidas ou em desuso); e nom digamos a consideraçom generalizada, fora de micro-minorias ligadas ao mundo da cultura, da língua e cultura de expressom portuguesa como estrangeiras, por mais que próximas.
Certo que da parte da institucionalidade cultural lusa tampouco temos ajuda, vista a sua indiferença cara a nós. Mais recetiva é a atitude no Brasil. Mas o gigante latinoamericano está tam longe que nem reparamos nas potencialidades que ele oferece para o nosso idioma equanto que língua oficial do estado mais poderoso e povoado da América Latina, com um dinamismo a torná-lo hoje o epicentro da lusofonia e com um registo popular (ou mais bem em plural: registos), nomeadamente no rural, que surpreenderia a mais de um por estes lares pola sua quase identidade com a fala dos nossos avôs e avós. Mas, como dixem, nada disto adianta enquanto nom tivermos vontade de ser, nem portanto nos identificar com aquilo que objetivamente também é nosso.
Quanto aos países africanos de expressom (oficial) lusófona, apresentam ainda realidades mais longínquas e exóticas para o cidadao comum. Nada a fazer polo de agora.
Em suma: se o desprendimento da parte meridional do antigo Reino da Galiza, virado Portugal, levou a nossa língua e cultura polo mundo fora através de um processo histórico de séculos —e foi ele o único a fazê-lo porquanto a Galiza setentrional ficou entretanto encurralada no recanto noroeste e enfeudada à hegemonia de Castela— isso é algo que nom é connosco, nom nos atinge, é história de outrem. Assim é que é entendido por um povo galego, com as suas autoridades à frente, a quem foi inoculado desde o século XIX um discurso nacionalizador espanhol em que nom temos cabimento. Inverter a marcha desse processo esvaziador da nossa idiossincrasia e protagonismo histórico é labor que concerne em grande medida à nossa historiografia, em que já se tenhem dado alguns passos importantes nessa direçom a demandarem continuidade. O que já fica de fora das capacidades do historiador é dotar ao nosso povo da auto-estima necessária para ele querer ser e, a partir daí, se identificar com aquilo que por história e por cultura lhe pertence. Aí é preciso dar o salto para a intervençom social.
– Palavra Comum: Que caminhos estimas interessantes para a criação cultural —e para a divulgação da história em particular— hoje?
– Carlos Velasco Souto: Pertenço a umha geraçom que tivo de se incorporar quase compulsivamente ao mundo das novas tecnologías da comunicaçom passado já o limiar dos trinta anos. Som, portanto, representante e portador da cultura clásica em suporte livro. Nom renuncio a ela de jeito nenhum nem vejo razões para o fazer, antes polo contrário. E confesso que o meu primeiro impulso é sempre o de escrever à mao. Escrevo sempre à mao, de facto, a primeira versom dos meus trabalhos. Ora bem, isso nom me impede de enxergar as enormes possibilidades que, para a difusom da cultura em geral, e do discurso histórico em particular, apresenta o domínio das chamadas TICs. Bem-vindas sejam elas, sempre que utilizadas racionalmente para achar novos espaços de informaçom, documentaçom e intercâmbio de ideias e nom, como amiúdo acontece, para alienar e aparvalhar ainda mais o pessoal, como se o nom estivesse de avondo.
Na sequência do dito, valorizo muito positivamente a pluralidade de perspetivas e focagens dimanadas de umha utilizaçom ajeitada, e com espírito crítico, dos recursos em rede, e acho que é por aí que se nos abre um imenso campo de posibilidades na hora de divulgar os produtos (como é feia esta palabra, tam nojentamente capitalista) culturais ultrapassando as múltiplas censuras do poder. Por aí vai esse campo promissório da ediçom digital, a chegar onde o papel, polo seu custo e limitações de índole física, nom pode chegar e eficaz complemento deste sempre que nom pretenda o substituir nem o arrombar. As chamadas redes sociais, aliás, podem fazer assim mesmo achegas de interesse e servirem de canle difusora, embora eu nom faga parte delas. Mas olha aí que o Império vigia por toda a parte as nossas vidas e milagres, e por essa via também.
Assim pois, e recapitulando o dito até aquí, considero válidos e suscetíveis de uso todos os formatos, recursos, suportes, plataformas e meios de difusom da cultura sempre que manejados com juízo e bom senso; com sentidinho, que diría um enxebre. Quanto à criaçom propriamente dita, vai continuar dependendo, afortunadamente, da nossa capacidade inteletual e exercitaçom dos nossos cérebros, com independencia das tecnologias que empregarmos.
– Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deveria ser- a relação entre a história e as artes -e também a repercusão na vida quotidiana-?
– Carlos Velasco Souto: A história, enquanto que ciencia do acontecer social com mentes de totalidade, tem por força que estar atenta à evoluçom das artes e, em geral, de qualquer manifestaçom da criatividade humana, para dar devida conta delas. Para além disso, se o historiador conceber a sua disciplina como alavanca ou instrumento de intervençom social, com maior motivo ainda terá que ir de mao dada com os artistas e demais criadores. Isto pom-se de relevo de um jeito especialmente claro nos contextos de formações sociais dominadas e dependentes como a nossa. Aqui o historiador está obrigado a convergir com os representantes do mundo das artes, as letras, a música e as ciências numha frente cultural comum que dignifique e reconstrua teimosamente, no dia-a-dia, a nossa cultura atualmente subalternizada. Angueira nada fácil, por outra parte, se levarmos em conta a feira de vaidades que em medida nom escassa carateriza os cenáculos da nossa cultura oficial (ou aspirantes a sê-lo), bem como a excessiva preocupaçom de umha parte dos nossos criadores por se verem canonizados para assim fazer-se um oco no parnaso com visos de passagem para a posteridade. Dito por outras palavras, demasiada obsessom por irem para estátua, que diria Castelao. E isso nom é bom, porquanto resta humildade e alicia a vertente interesseira e/ou egolátrica do criador em detrimento da dedicaçom à tarefa comum restauradora e dignificadora que antes referim. Para cúmulo de males, acontece isto num momento em que nos estamos a achegar perigosissimamente ao que pode ser um ponto de nom retorno para os nossos referentes sócio-culturais e identitários básicos, a língua o primeiro deles.
– Palavra Comum: Qual é a tua visão sobre a língua galega (e a sua vinculação com a Lusofonia)?
– Carlos Velasco Souto: Entendo a língua galega como o mais fulcral dos nossos sinais de identidade, o que mais nos define e melhor projeta a nossa psicología coletiva. Temos, pois, que defendê-la porque é nossa; antes de mais nada por isso, mesmo que fôssemos tam só quinhentos ou um milhar de falantes. Dito o qual, acrescento que nom considero a nossa língua como um património exclusivo dos galegos e galegas de naçom. Antes polo contário, como umha parte de um universo linguístico mais amplo a que por história e natureza pertence: o do romance ocidental galego-português, originado precisamente aqui e hoje espalhado polo mundo fora, conformando o âmbito lingüístico-cultural que conhecemos como lusofonia. Tenho para mim que negar esta evidência contribui nom pouco a tolher a auto-estima dos galegos e a confiança nas potencialidades do nosso idioma. O que em última instancia supom condenar este à extinçom, visto o balanço negativo que apresenta o processo de normalizaçom desenvolvido nos últimos trinta anos.
Ao fio desta reflexom fago aquí um parêntesis para salientar um aspeto que deveríamos ir pondo na agenda com caráter de urgência: o da necessidade imperiosa de mudarmos de estratégia se quigermos que o galego nom dessapareça da face da nossa terra. Porque ao ritmo em que imos e, reitero, se nom mudarmos radicalmente de rumo, à nossa língua restam-lhe duas gerações de vida em território galego; três, contando com a minha. Assim de claro e assim de simples. Naturalmente, o recuo do galego como língua normalizada na nossa naçom deve-se a causas muito mais profundas e complexas do que a simples recusa a reconhecer-se no tronco comum da lusofonia. Mas os resultados do último inquérito sociolingüístico (publicados polo Instituto Galego de Estatística) estám aí para demonstrar o seu estado agónico. E o pior é que tal situaçom parece ter apanhado os setores sociais que dizem defendê-la e amá-la totalmente à contramao, sem quererem-se decatar de que neste contexto, que eu denominaria de autêntica emergência nacional nos terrenos lingüístico e identitário, nom cabe já continuar com as linhas de atuaçom de sempre, como se nada substancialmente tivesse mudado e nom estivéssemos diante de um salto qualitativo no quadro de agressom liquidatória contra o nosso sinal de identidade mais prezado.
Bom, feita esta longa digressom, empato novamente com a questom da lusofonia e o reintegracionismo para afirmar que, vista umha situaçom como a descrita, me parece simplesmente suicida menosprezar as vantagens que nos comportaria assumirmos que temos umha língua de dimensom tricontinental com ampla projeçom internacional e, nom esqueçamos, idioma oficial num feixe de estados com especial destaque para o imenso Brasil. Certamente quando um tem morado, mesmo que por períodos breves, neste último país e em Portugal, nom pode menos de sentir mágoa, indignaçom e raiva ao ver a mancheia de recursos públicos malbaratados na Galiza quando destinados a construir tanto um padrom culto quanto umha linguagem técnico-profissional especializada que já há muito foi criada nos países referidos e que poderíamos ter incorporado sem o menor custo e esforço. Confesso-vos que em tal tessitura um sente umha vontade irreprimível de maldiçoar e rogar pragas contra os responsáveis —que os há, e nom apenas no neofranquista PP— de tamanho disparate, lamentando para além do mais que o dia de amanhá, quando o desastre estiver consumado, o nosso povo nom lhes vaia poder exigir essas responsabilidades, pola simples razom de que estarám já criando malvas. Bom, e se vos parecer corto aqui o discurso, que nom paga a pena se amargar demais com o galho de tanta burrice. Afinal de contas tinha mais razom que um santo o bom do Carvalho Calero: o galego, ou é galego-português ou galego-castelhano. Nom che há outra.
– Palavra Comum: Como seria a tua Galiza Imaginária? Que há dela na realmente existente a dia de hoje?
– Carlos Velasco Souto: À vista do discurso que venho de fazer e das condições vigorantes no mundo atual, dir-se-ia que a minha Galiza imaginária se situa no mais puro plano da utopia. Ora, ao cabo fôrom sempre as utopias que movérom a história, nom foi? (risos).
Entom, a Galiza que eu quereria, a Galiza que eu sonho seria substancialmente umha pátria socialista e plenamente soberana, afirmaçom que pola sua singeleza e rotundidade requer de umha certa explicaçom. Velaí. Quando digo pátria socialista refiro-me a um estado, obviamente sob a fórmula republicana, em que a propriedade dos meios de produçom fundamentais seja pública; em que a planificaçom económica tenha erradicado a ditadura desse estranho deus ex machina chamado de mercado; um país em que a paz, a igualdade e a solidariedade entre as pessoas de ambos os géneros sejam o eixo das relações humanas; um micro-cosmos, em última instância, onde todos e todas podamos desfrutar por igual do acesso aos fruitos da criaçom cultural e disponhamos de vagar para cousas tam absolutamente transcendentes como conversar tranquilamente com a família e os amigos, dar passeios gratificantes pola praia e a floresta e dedicar atençom demorada aos seres que amamos. Aliás, quando digo pátria soberana, estou a pensar numha Galiza dona dos seus recursos e da capacidade de decidir sobre deles, estádio que poderá ser alcançado quer através da independência política formal, quer fazendo parte de umha confederaçom com outros povos, dependendo de qual for o contexto histórico concreto que seja umha ou outra fórmula a que garanta um maior grau de soberania efetiva para a nossa naçom.
Finalmente, um outro aspeto importante a sublinhar dessa pátria por mim sonhada e arelada: terá de ser umha Galiza solidária com todos os povos oprimidos do mundo, umha Galiza, como já manifestei nalgumha ocasiom, capaz de acolher todos aqueles emigrantes à procura de um meio de e um futuro para os seus filhos na nossa terra. Sempre e quando, é claro, respeitarem a nossa cultura e forem quem de sintetizar com ela as suas próprias tradições, fazendo assim um contributo desde a mestizagem multicultural ao nosso ser coletivo como naçom. A República Socialista Galega com que sonho, pois, será branca, negra, mulata, índia e oriental; um pouco celta e sueva; outro pouco andina, magrebi, subsaariana, balcânica, chinesa, indostânica e tupi-guarani. Tocará gaita de foles, batuque, kena, jembê e o que quer que for. E continuará a ter no galego o seu veículo de expressom e sinal de identidade mais requintado, enriquecido agora polos empréstimos das línguas de todos esses novos galegos de adoçom. Será mesmo assim, ou nom será.
Enfim, com umha caraterizaçom semelhante bem se bota de ver que estamos longe de atingir tal reino do imaginário. Nem temos massa crítica no nosso país nem um contexto planetário favorável, e para que falar da funçom de cimento identitário atribuída à língua galega quando nem sabemos se ela será viva daquela. Seja como for, deixemos sequer umha pequena margem para a dúvida (risos) e apostemos na capacidade do ser humano para responder cada derrota com um novo ato de criaçom, como dizia o Eduardo Galeano. Na minha opiniom sempre pagará a pena luitar por umha utopia assim. Alcançá-la nom só é absolutamente necessário; também é possível.
A respeito da pergunta sobre que encontro de realmente existente dessa Galiza ideal na atualidade, responderia que bem pouco. Tam só o potencial de rebeldia, criatividade e luita de um setor infelizmente muito pequeno da nossa sociedade. Mas é nele que habita e se prefigura o futuro. Qualquer futuro em dignidade, se tivermos forças e inventiva para o construir. O contrário, o resto, como diria o poeta, “é soidá”.
– Palavra Comum: Trabalhas no ensino universitário. Qual é a tua visão das universidades e do ensino em geral?
– Carlos Velasco Souto: Sempre adorei o meu trabalho, mas confesso-vos que de três ou quatro anos a esta parte entrei em crise como professor por causa do modelo de universidade decorrente dos acordos de Bolonha. Este modelo, concebido e aplicado para a Europa toda, supom a meu entender umha completa degradaçom do ensino universitário, reduzido à condiçom de mero bacharelato ou por vezes nem isso. Leva aparelhado, a mais, dous graves defeitos: em primeiro lugar, um burocratismo insuportável, que nos obriga a ocupar horas a fio em labores de gestom em prejuízo da nossa atividade investigadora, sob critérios de duvidosa racionalidade; e, em segundo lugar, umhas atitudes exageradamente paternalistas a atrancarem o madurecimento dos alunos, quando nom aliciando a promoçom de estudantes com profundas deficiências formativas a quem literalmente lhes é regalado o título. Completa o panorama umha perversa conceiçom da instituiçom universitária como umha empresa, na sequência do neoliberalismo imperante, em resultas da qual som fomentadas entre o professorado atitudes tendentes à consecuçom de taxas de êxito a cada vez mais altas (quer dizer, aprovados a eito) a fim de nom perderem alunado. Até umha universidade regida por umha equipa de governo com clara consciência do serviço público como é a minha, a UDC, é incapaz de se esgueirar dos critérios do marketing. E cuido que isso acontece por se nom ter produzido, no seu momento, umha reflexom serena e em profundidade entre o corpo docente e investigador acerca do sistema desenhado em Bolonha e as suas consequências devastadoras tanto na organizaçom do ensino universitário, como na reestruturaçom da divisom internacional do trabalho, visto que ele, o plano, constitui um ataque frontal à igualdade de oportunidades. Essa necessária reflexom foi substituída na altura por um entusiasmo acrítico digno de melhor causa. Agora é tarde para reagir.
Por estas razões que vos exponho estou cavilando seriamente em abandonar a instituiçom o antes possível, passando para a reforma. Nom para ir para casa me deitar no sofá, é claro. Mas para orientar os meus esforços cara a um outro tipo de atividades em que poda ser mais útil à sociedade que me paga. Estou a falar, nomeadamente, de atividades de intervençom social através das quais canalizar o meu contributo ao combate pola destruiçom ?—por meios pacíficos, naturalmente— da iníqua formaçom social capitalista, com expressom atual mais requintada na barbárie do neoliberalismo. No fim de contas, e como já expressei com anterioridade, a luita polo socialismo e o comunismo é indissociável da minha dimensom como historiador.
Com isto nom pretendo transmitir umha mensagem derrotista no que às possibilidades de se regenerar a universidade diz respeito. Acontece, simplesmente, que estou canso e tenho direito a está-lo após trinta e tal anos de batalhas. Outros que venhem detrás podem ver as cousas de jeito mais otimista e, se quadra, possuem as energias precisas para nos revezar, aos que imos na maturidade, na tarefa de recuperar para a universidade o seu rol, hoje perdido, de inteletual coletivo a subministrar espírito crítico e formaçom humanista aos estudantes, com vistas à conformaçom de um segmento de profissionais de alta qualificaçom e vocaçom de serviço à comunidade. De facto nom faltam no meio universitário galego profissionais jovens (ou menos jovens) competentes com vontade de assumir essa responsabilidade. Tudo dependerá de se conseguem manter-se nessa linnha ou, polo contrário, som absorvidos polo sistema através do carreirismo ou o oportunismo interesseiro, como tantas vezes ocorre. Se predominar a primeira de ambas atitudes, nada me comprazerá mais.
Quanto à questom que me colocades acerca do ensino em geral, nom saberia responder direito. Constato, como todos e todas, que o sistema nom funciona bem e tem falhas, mas nom sei exatamente onde nem de que natureza. Tenho amigos e companheiros em todos os escalões do sistema. Todos som a falar das dificuldades que lhes toca encarar. Mesmo assim nom som quem de situar com precisom as raízes do problema: se é que elas residem nas mudanças contínuas de legislaçom, na inadequaçom desta à idiossincrasia da nossa sociedade ou sabe-se lá onde. O que sim sei é que à universidade nos chega muita gente impreparada e nós acabamos por reforçar e encerrar o círculo do mau funcionamento promovendo um bom número de alunos sem capacitaçom avonda para exercerem umha profissom.
– Palavra Comum: Que projetos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?
– Carlos Velasco Souto: Como antes vos referim, gostaria de me dedicar mais intensamente à intervençom social, sem por isso deixar de escrever sobre temática histórica. Também destinar mais tempo a essas atividades prazenteiras e humanizadoras que igualmente vos mencionei: passeios em contacto com a natureza, trato com pessoas… E o que nom é menos importante: recuperar o tempo lento no decurso vital, quer dizer, esse tempo ecológico e próprio de um planeta sustentável que hoje tam só as sociedades “primitivas” ou “subdesenvolvidas”—antes, também as sociedades socialistas— som quem de manter, ficando de fora dos atafegos e stress caraterísticos da voragem consumista do nosso mundo (sinal, por outra parte, de que sabem muito melhor do que nós o que é qualidade de vida). Suspeito que vou ter que aguardar até à reforma para o conseguir plenamente. Polo de agora vou dando passos nessa direçom: nom uso telemóvel; nom abro jamais o computador nem vejo o correio eletrónico nos finais de semana ou em férias… e assim por diante. Mas nom chega. Haverá que perseverar por essa via. Para terminar, se quadra nom seria demais fixar a residência por um tempo fora do país, para colher perspetiva e redimensionar esta ruda realidade nossa.
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