– Palavra Comum: Que é para ti a literatura (a poesia, nomeadamente)?
– José Pinto: O som da mastigação alheia quando a casa está em silêncio. A luz de presença intermitente e a falha da lanterna. Esquecemo-nos de comprar pilhas. No fim de contas tudo se resolve assim, comprando. Não é?
A poesia é o vírus, as vozes, espelhos múltiplos, a humanidade ao longe, através do livro, o sussurro, o colo, um beijo, às vezes mais. Um hotel, não casa. Cinco estrelas, luxo, preço impossível para o 1% da população mundial multimilionária, do tipo Leve 2, pague 1. Um verso pode mudar tudo?
Sim. Ou não, não é nada disto e eu entusiasmei-me demais.
– Palavra Comum: Como entendes (e levas adiante, no teu caso) o processo de criação artística?
– José Pinto: Um descontrolo. Vagas. Com o mar. A viagem. A rua e os seus imprevistos. Já me apareceram versos a ver jogos do Benfica.
Experiências, lembrando Rilke. A observação. Melhor: a atenção. A realidade tem poesia em abundância para saciar, seja qual for o estilo. Ler. Ler. E a necessidade. Sempre a mesma. Talvez a de sobreviver ao milénio ainda que ele vá apenas no início. E o limbo de criatividade (universal?) no período imediatamente antes de adormecer.
Depois obsessão. Obsessão. Obsessão.
– Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deveria ser- a relação entre as diversas artes (literatura, fotografia, música, artes plásticas, etc.)?
– José Pinto: O movimento de democratização e amplificação da palavra está a crescer, não apenas através da performance, como aliado à música – da experimental à guitarra, comum nas leituras -, à fotografia – lembro-me da ainda recente exposição ‘Terra‘ da Cultura Que Une e trabalhos do Antero de Alda -, às artes plásticas – os exemplos das colagens do Miguel de Carvalho e os poemas colagem de Rui Pires Cabral, que associa também a componente vídeo.
A enorme adaptabilidade da palavra faz com que ela se mescle facilmente com todos os meios de comunicação humana, sendo potenciada por eles e potenciando a transformação do mundo.
– Palavra Comum: Quais são os teus referentes criativos (num sentido amplo)?
– José Pinto: Tenho mergulhado na poesia caboverdiana, forçosamente ligada à natureza, em poetas como Manuel Lopes, Dina Salústio, José Luiz Tavares e Corsino Fortes.
Na poesia portuguesa: Manuel de Freitas (ou o poeta de rutura depois de Fernando Pessoa), Nuno Moura, Alberto Pimenta e Beatriz Hierro Lopes. Em breve espero ter em mãos a antologia da revista Apócrifa e vou saltando a pique no último número da Telhados de vidro.
Está a tornar-se uma espécie de ritual: O livro de horas e Cartas a um jovem poeta de Rainer M. Rilke na mochila. E, claro, a voz. Em espiral. Sempre regressa e prevalece.
– Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das obras com a sociedade, etc.) estimas interessantes para a criação literária e cultural hoje?
– José Pinto: O tempo que vivemos obriga-nos felizmente à recusa do “carneirismo” e força-nos a procurar uma arte que nos faça mais inteiros, no mínimo sobreviventes da realidade caótica. Logo as possibilidades para a criatividade nunca foram tão claras (e urgentes!) como hoje.
O autor e a autora sai à rua para encontrar-se com leitores e pessoas, seja em leituras de poesia, apresentações de livros e performances, partilhar perspetivas, no fundo, viver (n)essa comunidade, criar sentido de pertença, bem como cultiva valores que num lapso de anos se diluíram não sabemos bem para onde.
O que é fascinante a meu ver é que um dos valores centrais da arte atual – pelo menos do teatro e da poesia, aos quais estou mais ligado – é a autenticidade, o despir, a imperfeição, o erro a colmatar, na busca de uma realidade mais branda.
– Palavra Comum: Que perspectiva tens sobre a Galiza e a cultura galega em relação à Lusofonia? Que experiências tiveste até agora?
– José Pinto: Através das diversas iniciativas da Cultura Que Une em que estive presente pude ouvir, trocar opiniões acerca da cultura do lado de cá e lá da Raia, no lado de cá e lá da Raia, conhecendo e mantendo amizades, sendo inspirado e produzindo cultura.
De cada vez que vou à Galiza percebo que a fronteira é política. Que, por motivos históricos e linguísticos, é um regresso a casa, reencontrar uma nostalgia que esteve sempre presente, mas só se reconhece lá. E ao fim deste tempo poder repetir: os artistas galegos têm a porta aberta (literalmente) há séculos e a mesma vontade férrea de criar em conjunto.
Na minha opinião, a palavra chave para o futuro é: partilha. Reforçar iniciativas cá e lá, reinventar irmandades e reforçar os laços culturais.
– Palavra Comum: Qual é a tua opinião sobre a literatura e cultura portuguesa em geral a dia de hoje?
– José Pinto: Mais democratizada, também pelo uso crescente do ciberespaço. A separação autor/a-público está a desaparecer cada vez mais, a colaboração dentro da mesma arte e entre artes é cada vez maior, reforçando as redes. A geração espontânea de artistas, por exemplo poetas e poetisas. Nunca houve tantos escritores em Portugal como agora, tal como nunca houve tanta edição de livros. Cabe selecionar a quem seleciona, claro, mas não deixa de ser sintomático do mal estar e da necessidade natural da procura de si mesmo.
Cultura resiliente. Em parte pelo fortalecimento das redes que, apesar do pouco investimento financeiro, teimam, entre a possessão e o orgulho, em fazer avançar produções, algumas mesmo com muito poucos custos associados.
Penso que deva trabalhar-se mais na divulgação de eventos e ainda persiste algum elitismo que não abre mão dos banners gigantes onde se lê A arte quer-se egoísta!, como se vivêssemos num tempo de dogmas e de poções de rejuvenescimento.
– Palavra Comum: Que vínculos existem, do teu ponto de vista, entre Arte(s) e Vida(s)?
– José Pinto: A arte, ou melhor, as artes servem de meios de comunicação alternativos ao convencional com que somos sufocados através da televisão, dos discursos políticos, do marketing, dos discursos quotidianos ambíguos.
É a procura de uma linguagem mais humana se quisermos, servindo, quando partilhada, para lembrar o leitor, no caso da literatura e da poesia, da sua condição no contexto presente. Recorda o esquecido. Acorda do conforto e confronta o aqui e agora com o futuro, um futuro.
Um evento, um produto artístico e cultural é uma oportunidade de crescimento diante da angústia da vida e de desenvolvimento das relações com os outros, pois – utilizando uma expressão de Germano Almeida – humaniza-nos. Faz-nos ver – a quem faz – mais do que a posse, a competição predatória, a pressão social, a paranóia da carreira, os estereótipos e os preconceitos que temos, queiramos ou não. A arte serve para mostrar a riqueza do mundo, a volatilidade da vida e singularidade de cada um e cada uma.
– Palavra Comum: Que projectos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?
– José Pinto: Neste momento estou a preparar atividades paralelas ao concurso de poesia do Camões Centro Cultural Português, Polo do Mindelo, do qual sou também júri. Essas atividades incluem leituras e conversas, pretendendo (re)aproximar os mindelenses da poesia. E estou a terminar a tradução do Instructions within de Ashraf Fayadh.
Sinto-me honrado em continuar a colaborar com a revista Palavra comum e a coeditar a revista Tr3sreinos. Assim como é um orgulho acompanhar os malabarismos do coletivo Calhau desde o seu nascimento, embora agora, por motivos de distância física, não me seja possível estar presente.
Tenho ideias de projetos ligados à poesia, à produção poética, à leitura, à performance. A criação de uma revista prenhe de autores e autoras transmontanos. E claro, ver poemas meus editados, ora bem.
You might also like
More from Entrevistas
Tocar na palavra de forma viva | Sobre «Câmara de ar», de Hirondina Joshua
Câmara de ar (douda correria, 2023) é o último livro de Hirondina Joshua. Da Palavra Comum tivemos a honra de …
Tono Galán expus na Corunha | Alfredo J. Ferreiro
Tono Galán (A Corunha, 1967) é um artista corunhês muito polifacético que, embora se esteja agora a dedicar fundamentalmente à …