Mecanismo de Emergência é o novo livro de poemas de Tiago Alves Costa, poeta português residente na cidade da Corunha, publicado pela Através Editora.
Desde a Palavra Comum agradecemos ao autor as facilidades concedidas para a reprodução de vários poemas desta obra, assim como a entrevista realizada, que reproduzimos a continuação.
– Ramiro Torres: Que é para ti a poesia/literatura?
– Tiago Alves Costa: Um empregado das horas. Uma criança da qual desconhecemos a altura. Um velho sem nome. Dois pés amantes. Uma posição de vida: esperar. Um território da alma. Terão-nos barrado o acesso à alma? Um estado de ânsia. Uma descomposição da irrealidade trágica que vivemos. Texto-Movimento. Uma perturbação. Imigrar, para dentro de nós. Romper com a ditadura da língua. Um último reduto de liberdade? Uma luta contra a crueldade do tempo. Correr para trás. Exercício: deixar andar. Presságio. Actividade práctica do silêncio. Estacionar à sombra. Um homem que morre muito enquanto lava o seu carro ao domingo (um carro velho, muito velho). Uma cartografia do eu (nós?). Inscreve no vivo um princípio de bondade. Dá razão ao poeta!
Mas tudo isto que conto pode estar errado. Deve estar errado. Essa é uma das grandes virtudes da poesia. Talvez não se devam explicar tanto as coisas.
– Ramiro Torres: Como praticas, no teu caso, o processo de criação artística?
– Tiago Alves Costa: Como um atleta (e os atletas estão tão na moda): trabalhando diariamente o músculo. E o músculo: ler, escrever, escrever, ler, escrever e voltar a repetir de novo todo este processo até que o corpo se esgote. O problema que aqui se põe está na vida, que sedutora, hipnótica, inebriante, nos vem sempre pedir: vem! Pedindo que nos juntemos à celebração. E aí está o grande drama do poeta, a necessidade de viver por entre redenção do texto-vida….
– Ramiro Torres: Qual consideras que é -ou deveria ser- a relação entre a literatura e outras artes (plásticas, música, audiovisual, fotografia, etc.)? E entre Arte(s) e Vida?
– Tiago Alves Costa: Uma relação inteira e absoluta. Eu busco incessantemente essa relação. Junto-me aos meus companheiros e companheiras de outras artes. Procuro saber como trabalham, que processos criativos utilizam, o que os inquieta. Escrever é muito difícil. Talvez busque um território onde seja livre, das palavras, tentando que elas parem de exercer a sua autoridade sobre mim. O cinema é para mim uma das grandes paixões, encontro ali um território catártico, a poesia, a palavra, em todo o seu esplendor.
– Ramiro Torres: Quais são os teus referentes criativos (desde qualquer ponto de vista)?
– Tiago Alves Costa: Sou influenciado por centenas de autores (de variadíssimos pontos de vista). Mas como afirmava Tarkovski: sem o desejo de imitar nenhum, já que o grande objectivo de qualquer arte é encontrar um meio de expressão individual.
– Ramiro Torres: Que caminhos (estéticos, de comunicação das obras com a sociedade, etc.) estimas interessantes para a criação literária hoje?
– Tiago Alves Costa: Os caminhos são hoje amplos. Ambíguos, também. Fazem-se coisas muito boas, curiosamente, é o artista quem continua a ser o fiel representante da verdade do mundo. Não o político que fala no telejornal das 20 h. A Internet é um grande meio, senão o mais utilizado, para comunicar-se arte. No entanto acho que o momento é de urgência. É necessário voltar a pensar em outros métodos, quem sabe. A Internet aumenta a velocidade. A criação pelo contrário precisa de outro ritmo, de tempo e vida para madurar. A vida cultural só se desenvolve quando existe uma atenção profunda e contemplativa. E a atenção profunda tem vindo a ser suplantada por uma exacerbada hiperatividade. Para se acompanhar o frenético ritmo do avanço necessitamos dispersar o foco de atenção. E esse é hoje um grave problema que se começa a notar sobretudo nas crianças de tenra idade.
Considero, no entanto, apesar do momento trágico-cómico que vivemos, ser este o momento para se produzirem grandes obras. Este é um tempo redentor, sairemos dele transfigurados. Tenho a certeza.
– Ramiro Torres: Que perspectiva tens sobre a cultura galega e sua vinculação com a Lusofonia? Que achas das relações existentes e para onde consideras que se devem/podem dirigir?
– Tiago Alves Costa: Eu tenho a melhor perspectiva da cultura galega, pois vivo-a intensamente. O facto de viver na Galiza permitiu-me conhecer de forma medular a sua cultura. E quão fecunda ela é… Tenho aqui muitas referências culturais que me inspiram, contemporâneas e não só. Desde o cinema, a pintura, a música, as artes plásticas, claro, a poesia, a alma-mater desta terra.
A relação com a lusofonia é urgente, necessária, diria: imperativa. E este é o ponto de vista de um português: Portugal, e os restantes países lusófonos, têm que se integrar com a Galiza. Têm que se unir esforços para provocar esta relação, seja institucional ou de carácter independente. Quem não se quer integrar com o seu berço histórico-linguístico? Não sei se algum português já pensou nisto: Portugal é um bocado estendido da Galiza. A geografia da antiga Galécia ia até à margens do Mondego. Um português, sobretudo do norte como eu sou, tem uma inquestionável natureza galego-portuguesa. A etnografia, a paisagem, a amizade, a língua, tudo une a terra galega à sua irmã, a portuguesa.
Vão-se desenvolvendo projectos culturais que querem projectar e dimensionar este vinculo, é o caso, por exemplo, entre muitos outros, da “Cultura que une”. Eu próprio, ainda que de uma forma mais modesta, tenho tentando desenvolver esta união. O ano passado, por exemplo, juntamente com a Associação José Afonso, organizamos o 25 de Abril na cidade da Corunha, no Espazo de Colisións Artísticas, onde juntamos alguns poetas da Galiza e Portugal. E sempre que posso, tento levar artistas galegos ao outro lado da fronteira imaginária. Penso ser uma obrigação minha. Não poderia viver entre estas duas metades absolutas de mim mesmo sem reagir.
– Ramiro Torres: Que projectos tens e quais gostarias chegar a desenvolver? Fala-nos, mais em concreto, do teu novo livro, Mecanismo de Emergência, publicado por Através, editora galega…
– Tiago Alves Costa: Os meus projectos continuam a passar pela escrita. Esse é o meu grande projecto.
O mecanismo, é de emergência. Penso que se exprime nele a vida que não se fala, um território secreto e insatisfeito de seres-palavra, estóicos pés-sombra, solitários viandantes de chão sem nome; trágico o tempo que lhes tocou viver? Mas isto sou eu a pensar. Espero que o leitor, soberano e sensível, não pense, obviamente, o mesmo que eu.
Quanto à Através Editora, considero ser a festa, a celebração, que no meu intimo culmina a minha relação já de sete anos com a Galiza. Andava-a a namorar há algum tempo, a Através, e não sei bem como, ela aceitou-me. Corajosa, respondeu-me: Bem-vindo à nave!
Tenho a certeza que vai ser uma viagem fascinante.
***
MECANISMO DE EMERGÊNCIA
*
Levava, dentro do bolso direito das calças de bombazine, uma quantidade de dinheiro, e apoiado
sobre o diafragma, perto da linha média da cavidade torácica, no mediastino, a massa que se estende
do esterno à coluna vertebral, por entre os revestimentos dos pulmões, o coração.
No entanto, era pelo dinheiro que sentia uma especial debilidade, um tremor interno, que colocava o
meu instintivo mecanismo de autodefesa em sobressalto, e eu era consciente, que numa situação
limite, iria fazer tudo para o proteger.
(Capítulo: Mecanismo de Emergência)
*
Pára
de imitar os corredores
– fugindo
Corre
com o imóvel frenesim
dos serenos
(Capítulo: Singularidade do Lugar-Nenhum)
*
O RAIO DO CÃO
E até o raio do cão
o raio do cão que ladrava
ao fundo da
noite
calou-se
e a noite fechada à solidão
deixou de ser noite
no silêncio
do raio
do
cão
(Capítulo: Singularidade do Lugar-Nenhum)
*
EXÉRCITO DE MÃES
Exércitos de Mães
patrulham diariamente as nossas ruas
para nos protegerem
do adulto
que levamos dentro
(Capítulo: Singularidade do Lugar-Nenhum)
*
A FORÇA DO MÚSCULO VS. A FORÇA DA PALAVRA
Um homem com um braço musculado
Um homem com uma palavra inexorável
Um homem que treina o músculo
Um homem que treina a palavra
Um homem que exibe o músculo
Um homem que exibe a palavra
Um homem que usa o músculo para levantar uma pedra
Um homem que usa a palavra para levantar o mundo
Uma palavra com músculo Um músculo sem palavras
Um músculo palavra
Uma palavra músculo
(Capítulo: A possibilidade de sobrevivermos ao despertar)
*
A UTILIDADE DE UM CRÍTICO
Depois de muitas hesitações o Poeta lá decidiu
entregar os seus poemas a um crítico da área,
mas sem antes lançar-lhe um aviso:
Por favor, não os coloque na gaveta: podem explodir.
Sensível, o crítico decidiu respeitar as palavras do poeta
e ao chegar a casa, atirou os poemas pela janela fora.
Claro que os poemas nunca chegaram a explodir.
Mas o crítico nunca mais pôde sair de casa.
(Capítulo: A utilidade das coisas)
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