Natural de Nova Era (MG), pequena cidade vizinha da Itabira do Carlos Drummond de Andrade, Remisson Aniceto sempre imaginou que algum dia ultrapassaria as montanhas para conhecê-lo mas, como o poeta já havia advertido bem antes: “tinha uma pedra no meio do caminho”. Começou a escrever bem cedo por influência do seu pai que era alcoólatra inveterado, mas cujo vício ainda maior era a leitura. Apesar de pouco saber ler, seu pai não dispensava o que lhe chegasse às mãos, desde revistas e jornais velhos até bulas de remédio. Raramente ele ganhava um livro e quando isto acontecia era como se fosse premiado pela loteria. Ao ver as tantas expressões que se alternavam no seu rosto enquanto ele lia, pensou que aquilo devia ser bom e resolveu escrever, com o propósito de publicar e presentear o pai com seu livro.
No entanto, bem antes, o vício pelo álcool suplantou irremediavelmente em seu pai o amor pela leitura.
Remisson escreve contos, crônicas, resenhas, artigos e poesias e muitos dos seus textos são traduzidos e divulgados em revistas, rádios, jornais, teses de mestrado e livros didáticos.
É autor do livro “Leva-me Contigo, a Senhora S & outras histórias” (contos e crônicas) pela Editora Penalux.
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ENTREVISTA
– Palavra Comum: O que é para você a literatura?
– Remisson Aniceto: A literatura é a arte que caminha com a vida e dentro dela pois aquela faz parte desta. E somente quem é artista consegue sobreviver, mesmo que a arte que corre nas suas veias nunca tansborde. Portanto, não há como dissociar a literatura da vida, que são como irmãs gemelares, o que não quer dizer que não possam ocorrer entre elas desavenças e conflitos de opiniões. Mas quem vive num contínuo mar de rosas? Quem não precisa vencer obstáculos a cada dia, concordar, discordar, mas sobretudo aceitar que as diferenças unem tanto quanto as semelhanças? A literatura, como outras artes, possibilita um intervalo, uma bandeira branca entre as batalhas diárias da vida, um descanso para os olhos cansados, um fôlego para recarregar as energias e prosseguir no caminho. A literatura interrompe a monotonia e provoca o impacto sem ferir, para ensinar a refletir, ponderar e aceitar, possibilitando (re)ver o cotidiano com novos olhos, analisar inclusive com olhos que até então não sabíamos que havia em nós.
Mas vejam bem: a descrição acima tem muito de pessoal, já que a literatura é arte de grande abrangência, difícil de ser explicada além do espaço íntimo de cada escritor. Mesmo praticada por tantos, ela não perde seu caráter de arte contemplativa, sendo amplamente discutida e analisada o tempo todo pela crítica literária do mundo inteiro.
– Palavra Comum: Como entende e leva adiante, no seu caso, o processo de criação literária?
– Remisson Aniceto: Este é um processo realmente personalizado, e afirmo isto considerando as opiniões de cada escritor sobre a sua forma de criar. Comigo ocorre naturalmente, sem precisar me refugiar num quarto ou numa casa isolada da praia, nem tapar os ouvidos, para citar algumas “manias”. Andando pelas ruas, vendo um filme, ouvindo uma música, saindo de um sonho, uma notícia na tv, o que me inspira pode surgir a qualquer momento e em qualquer lugar. Aí sim, aprisionada a ideia central que os ventos me trazem, preciso imediatamente libertá-la num papel (especialmente em se tratando de poesia), antes que ela escape, pois esqueço com extrema facilidade. Depois, com tempo, vou acrescentando àquela semente minha visão de mundo e as impressões colhidas por onde e por quem passo.
– Palavra Comum: Qual considera que é a relação -ou qual deveria ser- entre as diversas artes (literatura, artes plásticas, teatro, música, audiovisual, etc.)?
– Remisson Aniceto: Há, em todas as formas de arte, ligaduras que podem ser vistas de diferentes ângulos por cada pessoa e inclusive a mesma pessoa pode encontrar, numa segunda observação, elementos deste compartilhamento que passaram despercebidos antes. Embora haja limites próprios e específicos que caracterizam a identidade de cada expressão artística, não podemos negar os intercâmbios de ideias, sons, cores e linhas que fazem com que um determinado artista consiga entender e transitar tranquilamente no espaço criado por outro de expressão diversa. Há música na poesia, há poesia na pintura, assim como no teatro e no cinema podemos nos deliciar ao mesmo tempo com a literatura, a pintura, a música, a dança, a escultura etc. Esta pluralidade é que possibilita o diálogo que harmoniza as tantas formas de arte.
– Palavra Comum: Qual é a sua opinião sobre a cultura e a literatura no Brasil, a dia de hoje?
– Remisson Aniceto: O Brasil é uma nação de diversificada cultura e a literatura ocupa um lugar de destaque. É recorrente dizer que aqui publica-se muito e lê-se pouco, e por obrigação, apenas o que se exige nas escolas. Portanto, apesar de diversificada, a cultura do brasileiro é pouca, limitada pela baixa leitura. Contribuem muito para este quadro a falta de prioridade nas ações de incentivo à literatura, assim como a efetiva utilização das verbas, dos programas e dos espaços públicos criados para tal finalidade. Além dos desvios da maioria dos recursos reservados para a cultura, os nossos gestores administram seus setores como se estivessem à frente de empresas privadas, visando primeiro o lucro e não o saber. Contudo, há que se ter esperança e depositar confiança naqueles poucos que trabalham na direção correta, direção que todos deveriam seguir.
Com relação à difusão, os novos artistas, independente do segmento, precisam abrir portas a machadas, e muitos daqueles notadamente talentosos não conseguirão mostrar seu trabalho, enquanto tantos já famosos são recebidos de braços abertos pelo mercado e até pela crítica, independente da qualidade da sua arte, pois “o nome vende”.
– Palavra Comum: Que projetos tem e quais gostaria chegar a desenvolver?
– Remisson Aniceto: Meu maior projeto foi e será sempre aproveitar ao máximo os momentos em família e com os amigos. À parte este, é continuar lendo muito e escrevendo a cada dia, sempre que o trabalho — que nada tem a ver com literatura — me permitir. Tenho dois livros preparados, um infantojuvenil e outro de poesias, o primeiro já apresentado e aguardando o parecer de uma grande editora e o segundo ansioso para sair da gaveta e ser compartilhado por muita gente.
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TEXTOS
Poesia pra o mundo
A poesia é a roda e o eixo do mundo: tudo se move a partir dela. Senhora das emoções, encontra-se em cada detalhe, em cada sorriso, em cada lágrima, em cada fala, em cada objeto. Às vezes quase imperceptível, ela sutilmente movimenta o mundo e o transforma, promovendo a integração e a harmonia entre os povos. A poesia pode ser classificada como o Quinto Elemento necessário à vida, pois assim como a Água, a Terra, o Fogo e o Ar, ela sacia a sede do espírito, germina e floresce, aquece e oxigena o sangue, abrindo novos horizontes. Transitória ou permanente de acordo com o olhar de cada leitor, por si só ela torna-se perene, fica. Na poesia podemos encontrar o caminho para a Paz.
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Entre a partida e a chegada
Entre a partida e a chegada,
a concretude do encontro
ou a expectativa na certeza
de que o tempo transforma.
Na despedida a promessa
do que se espera cumprir,
porém o tempo é mestre
na diluição da esperança,
invisível ponto na opacidade do nada.
Entre a partida e a chegada,
na metafísica do mundo
a indecisão, o temor
do vão e do desnível,
preenchível e retificável
ou a expansão do vazio.
No contraponto entre princípio e fim,
na inédita chegada ou no retorno
a mão da alegria ou da tristeza…
Convém desvencilhar-se das inúteis certezas,
das altivas convicções,
já que segundo após segundo
o tempo talha novos sulcos na pele
do corpo e da alma.
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Fragmentos
Dorme, que a vida é fracionada em dias e noites
como o sol que nasce e morre a cada dia.
Vive intensamente tuas dezenas, centenas
ou milhares de dias e dorme, dorme serenamente
para talvez despertar para um novo dia, uma nova vida,
vida dividida em vidas,
como quando abrem-se as cortinas e,
primeiro ato, cena um, a vida entra em ação!
E, segundo ato, segunda cena,
vários atos e várias cenas
e o pano desce.
Noite.
No seguinte dia, se se vive, reinicia-se
involuntariamente a mesma peça
em vários atos,
em várias cenas
com talvez o mesmo e mais outro e outro elenco.
Em cena encena naturalmente
que a vida é fracionada em tomos,
dorme, vive, vive e dorme serenamente,
que na medula da vida tudo surge de repente,
sem preparo, sem rubricas.
Tanta coisa
nascemorrenascemorrenascemorrenasce…
todos os dias, todas as noites.
Isto, enquanto há olhos, vê-se.
E se não se acorda, sabe-se?
Atores de palcos antigos, de peças passadas,
de lidos tomos, de atos findos
ainda não me disseram.
***
A CASA
Era ali a velha casa, sim, tenho certeza que era ali naquele cantinho do vale… talvez um pouco mais para a direita… quem sabe uns dez metros para a esquerda…
Mas era ali, tenho certeza, apesar dos tantos anos passados… apesar da memória que por vezes se cobre de uma leve névoa, ainda tenho na lembrança as frágeis paredes daquela casa estruturada no suor do homem, uma casa erguida como ergue a sua morada o metódico joão-de-barro. No lugar das ferragens os bambus, os finos troncos de árvores, os cipós trançados; substituindo os tijolos as placas de barro; na cobertura o denso capim em grossas trouxas prensadas, justapostas em centenas de camadas.
Sim, sentado daqui do alto, pela primeira vez após dezenas de anos, vejo a casa… vejo-a na sua rica totalidade, com a única porta e duas janelas quase sempre escancaradas à espera dos andarilhos que muito raramente traziam mais vida para seu interior. No cair da noite, a mulher, exausta da faina diária, debruçava-se na janela ou sentava-se no galho gigante e seco do quintal, antevendo de olhos fechados o dia seguinte, enquanto os últimos raios do sol se deitavam por trás do monte.
Sim, não há dúvida que naquele canto era a casa, imponente porque única, com o quintal coalhado de pirralhos entre galinhas e pequenos leitões, em disparada atrás do coco seco que servia de bola para os pezinhos já calejados. Depois eles corriam chafurdando no barro que a bica d’água transparente formava na terra.
Num janeiro, mês em que todas as chuvas marcavam encontro ali naquele vale, também daqui deste mesmo lugar, vi a casa sendo coberta pelas turvas águas da imensa e passageira lagoa. Depois mais nada vi.
Vejo um homem sair de trás das árvores e caminhar em círculos onde era a casa, com um graveto a demarcar com riscos no chão os quatro cômodos. Em seguida ele arrasta sem dificuldade sete enormes troncos retos, do mesmo comprimento e grossura, dispondo-os como base, sem descansar um só momento.
Não sei por quanto tempo, por quantas horas, talvez sete dias e sete noites, não sei, quedo-me ali, sentado, a observar atentamente os incansáveis e seguros movimentos do homem na lida que segue. Ele ajeita o chapéu, pega do facão e do serrote e sobe o morro do outro lado, até perder-se da minha vista… foi embora???…
Espero. Espero. Espero.
Após duas horas ele retorna, desce o morro lentamente, como quem tem todo o tempo do mundo à sua mercê, uma dezena de pequenas árvores depenadas nos fortes ombros matutos, joga-as no quadrilátero dos troncos e refaz o mesmo percurso por dezenas de vezes, até obter um amontoado de árvores, bambus e grossos cipós verdes. Com curiosa atenção vejo-o passar dias e noites a enfileirar buracos e mais buracos nos troncos do solo, fincar os troncos mais finos em todos os buracos, rachar os bambus e amarrá-los com os cipós aos troncos verticais, cuidadosamente, pacientemente, como uma incansável máquina, com o cuidado de deixar espaços para uma porta e duas janelas.
Contaminado da paciência daquele homem, dias e noites vejo-me ali, sentado, enquanto a casa é erguida sobre os grossos troncos, como uma gaiola ou uma nave preparada para uma possível gravidade. Os bambus vão sendo trançados, um a um levemente acima do outro, nos dois sentidos, formando pequenos quadrados exatamente iguais. Em seguida, o homem vem em minha direção. Levo um susto: o que fazer se ele me vê aqui, intruso a testemunhar o seu trabalho?
Então ele para a meio caminho, na beira do riacho. Entra com seus enormes pés descalços e começa a recolher o barro das margens, levando latas e latas cheias até a casa em construção. Recolhe parte de uma seca terra vermelha e mistura ao barro do rio, até formar-se uma massa consistente. Aos poucos, pelos lados de fora das paredes, vai depositando com fortes movimentos o barro nos quadrados dos bambus, passa para o lado interno e ajeita tudo. Devagar ele vai repetindo os gestos, mecanicamente, até fechar toda a casa com aquele barro.
Creio que estou há cinco dias sem dormir, sem sono, observando.
A manhã seguinte traz uma fina chuva, que seguirá pelo dia inteiro e a noite toda, enquanto o homem cobre a casa com as camadas de sapé colhido nos dias anteriores.
Na manhã do sétimo dia o homem fica parado diante da casa, depois vira-se e sobe debaixo da chuva que se intensifica o mesmo morro por onde trouxera tudo o que foi usado para erguer a casa. Imagino que, depois de construí-la, depois de cumprida a missão ele voltava para seu lar. Mas para quem aquela construção? E para que tanto trabalho?
Tomo coragem e desço o morro, me aproximo da casa e sou tomado repentinamente por uma estranha emoção.
É esta a mesma casa, aquele homem não a fez, ela estava o tempo todo ali. Entro e sou invadido pelos mesmos cheiros da casa velha, por todos os aromas da antiga casa. Passo pela sala, entro pela cozinha, saio num quarto e chego ao outro quarto. Tudo igual, os aposentos são os mesmos, a casa nunca saiu dali.
Fora, ouço o ruído de passos, uma profusão de passos. Pela janela vejo o homem descer o morro, seguido por galinhas, porcos, cães, gatos e outros tantos animais grandes, médios e pequenos. Não há tempo de sair da casa, de me esconder e fico colado à parede, enquanto entra o homem, enquanto entram as galinhas, os porcos, os cães, os gatos, burros, lobos, pacas, onças e uma infinidade de outras espécies de animais. E a casa parece agigantar-se. Quanto mais animais entram mais ela tem espaço para abrigá-los. Eles vão se encostando, deitando, ajeitando-se naquela casa. E o homem com eles. Animal estranho de encontro à parede, ninguém dá por mim, nem o homem, nem os outros bichos.
Até que a chuva aumenta, aumenta, aumenta, a água sobe, sobe, sobe e com ela sobe a casa totalmente habitada, ondulando vale abaixo, indo por um canto, pelo meio, pelo outro canto, como uma desgovernada arca.
E as águas continuam subindo, elevando-se incessantemente, e no turbilhão a casa com os animais se eleva, se eleva, se eleva indefinidamente.
NOTA DO AUTOR: os poemas reproduzidos nesta matéria fazem parte do livro “Entre a partida e a chegada“, em fase de preparação e ainda sem editora.
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