Luís Filipe Sarmento é um escritor de combate, alguém cujo caminho se faz sem cedências paliativas. A sua escrita é capaz de juntar-nos a todos na nossa dor, no nosso sonho, no nosso pessoalíssimo modo de encarnar a morte e soprar-nos ao ouvido com a mesma faúlha, a mesma réstia de fogo. Uma espécie de busca impetuosa de todo o novo que se abre sob os nossos olhos, tudo aquilo que supõe uma ruptura com a ordem das coisas, e dessa inesgotável fonte, assombrar-nos no escuro da leitura e paredes meias atingir o belo. Não é por acaso que para ele a literatura é um meio armado em defesa da liberdade, uma ética, um forte opositor a todas as derivas do poder. Nunca fui um tipo de «meias-tintas» nem nunca me vendi, a troco de parcas glórias efémeras, ao establishment. Acaba de cumprir 45 anos de uma intensa vida literária, compilados na sua obra “Ao Rubro” (Poética Edições). Um exemplo para todos nós que ousamos tentar a escrita.
Luís Filipe Sarmento nasceu, em Lisboa, a 12 de Outubro. Estudou Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Jornalista, Escritor, Tradutor e Realizador de Televisão. Alguns dos seus livros e textos encontram-se traduzidos em inglês, espanhol, francês, italiano, grego, árabe, mandarim, japonês, romeno, macedónio, croata, turco e russo. Produziu e realizou a primeira experiência de Videolivro feita em Portugal no programa Acontece para a RTP (Radiotelevisão Portuguesa). Coordenador Internacional da Organization Mondial de Poétes (1994–1995). Membro do International Comite of World Congress of Poets. Presidente da Associação Ibero-Americana de Escritores (1999–2000). Coordenador para Portugal da World Poetry Movement.
A minha identidade é a liberdade que defendo, ela não é preexistente, é a luta permanente pela minha integridade
É inevitável começar por perguntar-te como tens vivido estes tempos de confinamento, teve algum impacto nos teus hábitos de escrita?
LFS – O confinamento, por razões pandémicas, foi uma restrição à liberdade e que poderá também ter servido de ensaio para qualquer projecto sinistro. Nunca se sabe. Quanto a mim, vivo num confinamento livre por opção desde há muitos anos, donde não ter significado qualquer alteração na prática alimentar que a escrita é como ferramenta fundamental do pensamento. Escrevo todos os dias. O impacto deste confinamento tem mais a ver com a surpresa que esta pandemia representa e que desorganizou o mundo, exibindo as suas fragilidades, mas expondo também a arrogância incompetente das lideranças mundiais, a sua hipocrisia e o seu desprezo pela vida humana. Serão, seguramente, novas temáticas a abordar por muitos escritores. Das suas reflexões contemporâneas se edificará a história e só depois se revelará o que agora oculta.
E tudo isto acontece justamente na celebração dos teus 45 anos de carreira literária que serão celebrados com uma antologia com o título “Ao Rubro” (Poética Edições). Queres falar-nos um pouco sobre este livro e o motivo pelo qual escolheste este título?
LFS – Não é uma antologia, mas sim uma compilação de tudo o que escrevi e fui publicando ao longo de 45 anos. Creio que o título Ao Rubro expõe muito bem o estado de espírito em que me encontro tanto na produção literária, seja poesia, ficção ou ensaio, como na vida. Nunca fui um tipo de «meias-tintas» nem nunca me vendi, a troco de parcas glórias efémeras, ao establishment. Desde que lutei pela minha liberdade e ajudei a conquistá-la nunca mais cedi um milímetro que pudesse colocar em causa a contínua experiência de ser um homem livre. Estar Ao Rubro é manter-me com esqueleto nesta luta diária para que a minha voz chegue o mais longe possível. Neste sentido, as redes sociais revelaram-se uma ferramenta importantíssima e eficaz. Como disse numa outra entrevista, seria ética e esteticamente perigoso se me deixasse capturar por jogos de interesse que iriam interferir inevitavelmente no meu pensamento. E quando me olho ao espelho todas as manhãs vejo um homem livre que quer continuar a ser livre, o que o obriga a uma resistência permanente. E creio que a minha literatura reflecte este pilar que sustenta a minha existência.
Parece-me haver um tronco que une a tua poesia desde o teu primeiro livro, “A idade do fogo”, ao mais recente “KNK”, e que, a meu ver, talha com precisão o inferno humano e a divina perfeição da matéria. Consegues rever-te nesse poeta dos primeiros anos?
LFS – Revejo-me nesse poeta dos primeiros anos porque eles representam o início daquilo que sou hoje enquanto escritor e homem da liberdade. Ao Rubro, é a compilação de todos os livros de poesia que publiquei nos últimos 45 anos. Ao contrário de muitos poetas que, legitimamente, renegam as primeiras obras do seu percurso, eu preferi, nesta compilação, mostrar a evolução estética, política e social que se foram transmutando ao longo das últimas quatro décadas e meia. Se os primeiros títulos exibem a frescura e o idealismo próprios de um jovem libertado de uma ditadura, os da segunda fase, digamos, apontam para uma busca espiritual mais estruturada, uma demanda de respostas a questões existenciais, a questionamentos que desequilibram o que seria de esperar de um jovem adulto; numa outra fase, deixo-me fascinar pelo experimentalismo neobarroco sem deixar de todo as temáticas da fase anterior. E há um livro de 1998 que resume tudo isto, criando, no entanto, uma entidade própria: A Intimidade do Sono. Segue-se um longo hiato na publicação de poesia em Portugal, ainda que fossem saindo livros meus por esse mundo fora, porque me entrego à paixão da ficção em prosa. Esta reunião de toda a minha obra poética contém também muitos inéditos, textos esparsos a que chamo Obscuros e algumas experiências que por qualquer razão foram abandonadas. Nunca deixei de escrever poesia ainda que dividisse os meus impulsos com a prosa de ficção, pequenos ensaios e artigos. Inicio uma nova fase em 2015 com Efeitos de Captura a que se segue, em 2016, Repetição da Diferença e Casa dos Mundos Irrepetíveis. Em 2017, lanço um híbrido com um tema comum, a hipermodernidade, Gabinete de Curiosidades, constituído por uma colecção de poemas a abrir, seguindo-se depois pequenos ensaios, manifestos e panfletos, acabando com uma ficção onde se experimentam vários registos. Em 2019, publico KNK que quer dizer, apesar de nunca ser explicitado em nenhum espaço do livro, Kant, Nietzsche e Kafka. É um diálogo que me propus fazer com alguns aspectos das obras desses autores. E este Ao Rubro reúne todos esses momentos que constituíram até hoje a minha produção poética, incluindo já a primeira parte de um livro que ainda estou a escrever, Rouge.
Por que continua a ser tão necessário reescrever o homem e o mundo?
LFS – Porque esse é o motor da história. Eu não pretendo compreender o mundo em todas as suas mutações, seria de uma arrogância ridícula, mas capturar alguns fragmentos e pensá-los. Sabemos onde estamos hoje mas não sabemos onde estaremos amanhã. E é essa dúvida permanente que me faz reflectir sobre as razões que nos expõem à violência numa percentagem incomparavelmente superior do que à felicidade e ao bem-estar. A minha identidade é a liberdade que defendo, ela não é preexistente, é a luta permanente pela minha integridade; o que dita a minha identidade é a minha consciência e não o que herdei da sociedade onde nasci. Enquanto estiver vivo estou a viver o infinito, projectando-o na minha escrita. Ao escrever, estou a registar em cada segundo no passado o presente e a minha visão do futuro. Escrever é a perpetuidade da minha existência. Um dia acabará, mas como ainda não acabou não deixarei que outros me silenciem. Esse é o exercício diário, infinitamente diário.
Alguns afirmam que esta é uma “época da precipitação” do “facilmente despachado”, da “hipercomunicação”. Como é que os teus mecanismos de escrita sobrevivem a este novo paradigma? As redes são uma boa ferramenta?
LFS – Aprendi, por questões de sobrevivência ética e estética, a ser um animal que se vai adaptando criticamente ao meio. Não há outra maneira. Eu não vivo isolado do mundo nem quero viver afastado dele. Caso contrário seria a morte. Alimento-me dele, exploro-o e penso-o. O que é hoje o «facilmente despachado» dará lugar à decepção, à desistência, a uma entrega da sua soberania à decisão de outros. O que é perigoso. A hipercomunicação veio aproximar desconhecidos que se mantêm desconhecidos com a ilusão de uma íntima proximidade que na realidade não existe; é também uma máquina que cria produtos e torna-os efémeros, obsoletos, o que está a plasmar-se no comportamento humano. E parece-me que no subsolo estão questões ideológicas. A cultura de esquerda sempre se mostrou solidária e preocupada com a sua raiz; já as culturas de direita e de extrema-direita promovem o lucro a qualquer preço para produzir existências efémeras que são hiperconsumidas, criando ao mesmo tempo distâncias entre aqueles que não podem e os que podem ter acesso, divisões abismais, sustentando-se em todos os seus actos na hipocrisia religiosa, substituindo a naturalidade solidária do ser humano na perversa caridadezinha das elites. Elites que culturalmente promovem a ignorância para manter e fazer manter os seus excessos pornográficos. Ora isto dá lugar a uma violência impensável. E aqui a pescadinha morde o seu próprio rabo. Se há violência há que alimentá-la com novos produtos informáticos e a sua difusão e consumo cria um novo negócio tão perigoso como é o clássico negócio e tráfico de armas. E esta violência estende-se a todas as disciplinas da existência humana. O que fazer? Combatê-los com as mesmas ferramentas para a promoção da cultura, do seu interesse, para que a prática do pensamento seja um exercício natural do humano e que a sua curiosidade o leve a explorar infinitamente o conhecimento. É, neste sentido, que as redes sociais podem ter um papel importante e positivo. Se não houvesse redes sociais e as possibilidades que o mundo digital oferece, esta revista não existia; esta e todas as outras que promovem o objecto cultural como um meio indissociável à educação do indivíduo. É evidente que no vastíssimo mundo digital o confronto clássico entre o bem e o mal continuará. Estamos no início de uma época de viragem, apenas no início, que será muito acidentada. Se a ciência, a cultura, a arte, a educação e a ecologia não forem uma aposta convicta dos Estados dentro de poucas décadas teremos uma população de psicopatas que destruirá o seu criador. Há muitos escritores, entre os quais me incluo, que alertam todos os dias para os perigos escondidos no futuro e fazem-no justamente através da hipercomunicação digital.
Escrever será sempre um acto de resistência
contra o silêncio
Baudelaire descreveu os poetas e os artistas modernos como “caçadores perdidos nos grandes bosques”. Achas que somos mais que nunca filhos modernos da aflição?
LFS – Hoje, não creio que os artistas onde os poetas se incluem sejam caçadores perdidos nos bosques, mas militantes da transformação. Arte é transformação no espaço infinito da humanidade. Faz parte do ADN do artista fazer novo do velho, partir do que existe e criar a sua condição de possibilidade para conceber o que ainda não existe. Este é o grande fascínio que move o artista. E, hoje, depara-se com uma nova aventura. O Lipovetsky diz que há uma vitória do capitalismo artístico. Se olharmos com atenção para os século XX, o chamado século do povo, das grandes revoltas e das transformações das quais somos hoje os utentes, a cultura modernista foi uma onda de choque contra o instituído universo burguês, os movimentos de vanguarda faziam da subversão a sua feira de atracções, os movimentos sucediam-se, excedendo-se na exibição de diferenças. O que é que aconteceu? É que esse capitalismo artístico fez integrar no seu sistema as vanguardas que o combatiam, transformando-as em objectos de consumo, caros, procurados, institucionalizados pelo poder. As vanguardas deixam de ser marginais e passam a integrar os mercados de produção e comercialização. É o júbilo do mainstream. Deixa de haver oposição entre arte e cultura e o mercado canibal da produção industrial e da distribuição comercial. A arte deixa de ter o papel revolucionário e passa a ser manipulada prazenteiramente pelo poder. Olha à tua volta. Ora este conforto artístico amoleceu os artistas do mainstream que adoram exibir o primeiro grito da última moda, o que é muito caro e se é caro nada mais fácil do que vender a sua arte como megafone do poder que os sustenta em épocas de vacas gordas. Agora, que estamos a viver uma pandemia, surgem os primeiros sinais do abandono desses artistas que deixam de poder exibir o primeiro grito da última moda porque a fonte secou. E o que resta? Restam as bolsas de resistência dos artistas que nunca se venderam a esse capitalismo artístico e que entendem a Arte como veículo para uma superioridade ética que é o que tem faltado desde que o século XXI se inaugurou. Acredito que só a revolução permanente terá essa força transformadora da Arte.
Voltando à tua obra, a filosofia, sempre indissociável da tua poesia… Sabe que tudo é formado por coisas simples / e nada simples é / tudo é necessário e mortal. Muitas influências de Gilles Lipovetsky que a obra traduziste para português?
LFS – Somos feitos de interferências culturais, somos o resultado dessas interposições, dessas «infecções», dessas contaminações. E ainda bem. Eu não traduzi tudo do Lipovetsky, mas uma boa parte da sua obra. Ele teve o mérito de trazer para a reflexão filosófica temas que a filosofia não tratava como o luxo, a moda, o capitalismo hedonista, a intensificação do efémero, o hiperconsumo estetizado, entre muitos temas que fazem parte do nosso quotidiano. E é natural que a minha poesia, a minha ficção, o meu pensamento, espelhe essas reflexões. É mais evidente no meu livro Gabinete de Curiosidades, que é um híbrido, com poesia, ensaios, manifestos, panfletos e ficção onde a temática da hipermodernidade ocupa a reflexão nos distintos géneros. Desde o primeiro livro, A Idade do Fogo, de 1975, a ideia surge-me sempre pelo título. Se não há título não há livro. Ele é o que irá determinar a estrutura e a temática do livro. Se isto pode ser evidente para a ficção e para o ensaio, já não o é para a poesia. Mas é assim para mim. Nunca fiz poemas soltos para juntá-los, depois, sob um título. Creio que não seria capaz de fazê-lo. Nesse sentido, todos os livros obedecem a uma temática que é desenvolvida e trabalhada até à exaustão. A filosofia esteve sempre presente desde o meu primeiro livro e esteve sempre presente porque creio que é a melhor ferramenta para o trabalho criativo do artista que se quer interventor do seu tempo.
“Efeitos de Captura” e “KNK” são os livros que talvez mais procurem essa força, um testemunho da existência e justificação da vida?
LFS – São dois livros diferentes sem deixar de ter um parentesco próximo. O Efeitos de Captura (2015) vem dos subterrâneos para a luz. O KNK (2019) é um livro de interiorismos que procura num diálogo com Kant, Nietzsche e Kafka, recolocar as grandes questões da condição humana, da absurdidade da existência. A escritora e investigadora Ângela Almeida diz na sua análise crítica que se trata de um «lugar onde razão e emoção, ética e estética, unidade e heterodoxia se fundem para mostrar que o monstro não é apenas o sujeito poético metamorfoseado, mas uma humanidade inteira que vive no mesmo «labirinto sem porta», como diria Borges. O parentesco próximo com Efeitos de Captura revela-se no comprometimento com a humanidade, contra a falsidade do poder, contra a manipulação, contra uma nova escravatura do medo, contra o terror. E, neste sentido, são livros de luta permanente e, como tu o dizes, um testemunho de uma existência rubra cuja liberdade é a justificação suprema da vida.
O que é hoje o «facilmente despachado» dará lugar à decepção, à desistência, a uma entrega da sua soberania à decisão de outros
E tens também os teus romances onde encontramos invariavelmente a tua poesia, mas também o teu lado cinematográfico.
LFS – O tratamento poético da linguagem está sempre presente na minha literatura – mesmo nos artigos e ensaios que tenho escrito – e não podia deixar de estar na ficção. Ora esse lado cinematográfico, como tu muito bem sublinhas, vem-me da minha juventude privilegiada ao conviver diariamente com muita gente do cinema que me orientou leituras, com quem vi muitos filmes, assisti a discussões e debates sobre cinema que nos anos 70 e 80 ocupavam o centro do interesse intelectual da Europa. Ver filmes de realizadores tão diferentes como Truffaut ou Bergman, Pasolini ou Lelouch, Visconti ou Kubrik – e a lista nunca mais acabaria – perceber as suas opções estéticas, as suas linguagens singulares e a sua filosofia e interiorizar como aquisição própria para uma cada vez maior completude – ainda que seja infinita – do meu ser enquanto ser curioso e alimentado pela curiosidade em si viriam a deixar uma marca indelével na estrutura do meu pensamento. Desde a invenção do cinema, que coincide com a explosão das vanguardas, que ele se torna amante inseparável da poesia. Ora estas duas linguagens cruzadas jamais poderiam faltar quando pensei as minhas ficções. São ferramentas, a poesia e o cinema, que ajudam a edificar a minha ficção, iluminando-a, mas ao mesmo tempo não renunciando às obscuridades que a prosa potencia. Sim, a minha ficção é cinema.
Há quase sempre um questionamento, um olhar que se erige sob o medo, a ignorância e a cegueira que nos tolhe há séculos. Conceberias a tua obra de outra forma, um exercício diário de sobrevivência/resistência?
LFS – Escrever é, para mim, e será sempre, um exercício diário de sobrevivência e de resistência. De sobrevivência porque o acto da escrita é vital, é nisto que reside o mistério da literatura. Quando se coloca a questão retórica «para que serve a poesia?», respondo sinceramente que não serve para nada a não ser para me manter vivo ao serviço da minha língua e da minha linguagem. De resistência porque a literatura é um meio armado em defesa da liberdade. Numa época em que novos modelos de fascismo estão a surgir um pouco por todos os cantos do mundo, que tenta novos mecanismos para fazer prevalecer o silêncio, tentando neutralizar o livre pensamento, a crítica do gosto e dessensibilizar as pessoas para a cultura enquanto organismo vital de uma civilização, a escrita será sempre de resistência e o livro um forte opositor a todas as derivas do poder. A literatura é em si um código indispensável para compreender e pensar tudo o que nos rodeia, o pensamento poético não defende dogmas, combate-os, para que haja transmissão de conhecimento no tempo. Escrever será sempre um acto de resistência contra o silêncio.
Desde que lutei pela minha liberdade e ajudei a conquistá-la nunca mais cedi um milímetro que pudesse colocar em causa a contínua experiência de ser um homem livre
Contavas-me um dia numa conversa que a escrita é mais violenta que a fome ou a sede. É esse fogo, esse olhar torrencial e livre pelas coisas, o segredo para se encontrar uma voz singular e poderosa?
LFS – Creio que o mais difícil para qualquer jovem escritor é encontrar a sua voz, ou seja, o seu estilo. E ele, se aparecer, revela-se nos primeiros anos da sua aventura literária; se não acontecer correr-se-á o risco do recurso à mimetização, à abordagem de temas batidos, ao lugar-comum, de dizer o que já foi dito por outros. A literatura resulta sempre da experiência de cada um, das suas vivências marcantes, das observações minuciosas, das leituras, do cinema e do teatro que vê, da paixão pelas artes plásticas, pela fotografia, etc. É nesse vasto território e o que ele inspira, revela ou propõe, que se vai construindo o edifício que constituirá mais tarde a paisagem íntima da nossa diferença. No meu caso, ainda muito jovem, a experiência da luta pela liberdade, contra a guerra colonial, contra a censura e a experiência da revolução marcam indelevelmente o meu caminho. Com a revolução, a descoberta do novo e do acesso livre ao novo, o que implica uma predisposição para o infinito, é um caminho interminável, pleno de sede e fogo, mas no qual se vai elaborando uma linguagem própria como se fosse o rosto e a assinatura que nos identifica. Um dos elogios mais simpáticos que me deram veio do Luís Osório que diz numa pequena nota crítica: «Ele não escreve como ninguém. Escreve como ele». Só decido publicar algum texto ou livro se nele me reconhecer. E nessa identificação tem de lá estar o novo. É por esta razão que estou agora a produzir híbridos no sentido em que há uma mestiçagem de géneros nessa busca interminável da diferença. Fiz a primeira experiência com Gabinete de Curiosidades e, neste momento, estou a acabar o Rouge que vai um pouco mais longe. A poesia não tem de ser só poesia nem o ensaio só ensaio nem a ficção apenas ficção. Tem de ser tudo miscigenado. É isso que me interessa fazer e não o que já foi feito e continua a ser feito. É um programa meu. Uma experiência do inesperado. Uma aventura no mistério.
Identificas, na tua poesia, alguma corrente, algum autor que tenha sido fundamental para o teu percurso? Como era recitar ao lado de Natália Correia?
LFS – Estamos sempre a ser contaminados por outras vozes. O que é bom. Mas devemos identificá-las para não cair na facilidade da imitação ou de escrever à maneira de fulano ou sicrano. Isso não me interessa nada. Poderá haver fascínio e prazer com um determinado escritor, mas não me deixo conspurcar por aquilo que nesse autor é novo ou me fascina. Aplaudo-o, mas não seguirei esse caminho até porque ele seria sempre uma impossibilidade.
Ler textos meus ao lado de Natália Correia era um prazer imenso porque ela sabia, ao contrário do que se possa pensar, estimular discretamente um jovem poeta. Apesar de tudo, participar em espectáculos de poesia com a Natália era estimulante mas também era previsível. Era muito mais difícil, por exemplo, estabelecer um alinhamento com o Melo e Castro porque nunca se sabia o que vinha dali. O Ernesto Melo e Castro é um enorme escritor, de quem fui muito, muito amigo e numa particular aventura até fui seu editor, em 1990, quando a reunião da sua obra poética foi a edição inaugural das publicações da Tertúlia. Estive com ele várias vezes em palco e ficava absolutamente fascinado com os coelhos que ele sacava da cartola. Mas li também, por opção dele, ao lado do prémio Nobel Derek Walcott, que me disse «hoje vais ler comigo», no Festival Internacional de Poesia de Las Palmas, em 1996. Foi uma experiência estimulante. Recordo-o com muita saudade. Era um enorme poeta e um invulgar ser humano.
Dezenas de países visitados, China, Colômbia, ou Turquia, em eventos literários de diversa natureza. Nas circunstâncias actuais como vês a projecção destes eventos no futuro?
LFS – Com esta pandemia que nos tocou em sorte viver, os poetas, alguns editores e promotores, não se deixaram intimidar por estas circunstâncias e decidiram através das novas tecnologias juntar os interventores culturais das mais variadas latitudes para comunicar entre si, mas também para dar a possibilidade a muitos leitores e amantes de poesia assistir pela primeira vez a encontros de escritores, ouvi-los, questioná-los, numa aproximação, ainda que virtual, que noutras condições não teria sido muito viável. Aos poetas de fazer ouvir a sua voz nos quatro cantos do mundo através dos múltiplos encontros na Internet via Zoom ou através de outras plataformas de streaming meetings, alcançando audiências inimagináveis, em algumas casos de dezenas de milhares espectadores interessados em ouvir poetas, filósofos, contadores de histórias. Ora esta realidade veio abrir uma janela de oportunidade para futuros encontros presenciais e que darão a possibilidade a muita gente interessada no fenómeno literário a assistir a distância, aumentando consideravelmente assim as audiências. Já estão a ser marcados para 2021 inúmeros festivais literários, congressos, feiras, presenciais, mas que contarão com plataformas de streaming para que mais gente tenha acesso. Estes encontros nacionais e internacionais são meios que aproximam pessoas, que promovem o debate, mas também a denúncia e a contestação à disseminação dos novos fascismos e aos seus programas racistas, xenófobos, homofóbicos, corruptos. Estes encontros promovem a fraternidade e a solidariedade entre escritores e leitores e são palcos de liberdade. E creio que isto é o mais importante. Através destes festivais e congressos defender aquilo que mais necessitamos enquanto criadores artísticos: a nossa Liberdade. E ela é incondicional.
Sinto-me perfeitamente em casa na nação Galega. A sua História é a minha História, a sua paisagem é a minha paisagem.
Qual a tua opinião sobre a poesia que se faz actualmente em Portugal?
LFS – Essa é uma pergunta que não se faz (risos). A poesia que se faz hoje em Portugal, como em todas as outras épocas, tem de tudo. Há poesia muito boa e poesia muito má. Mas o que mais me interessa é a proposta revolucionária de poetas da tua geração, a sua linguagem inovadora, as suas propostas artísticas e filosóficas, o seu descomplexado modo de estar. Isso interessa-me muito. Até porque convosco eu nunca envelheço. E isto interessa-me muito mais (risos).
Não queria acabar sem a pergunta ritual: da Galiza, alguma viagem ou recordação? Algum autor ou alguma obra que queiras mencionar?
LFS – Já corri a Galiza de lés-a-lés. Eu sei que isto é um lugar comum, mas não deixa de ser verdade: a Galiza é um regresso ao berço do que somos. Sinto-me perfeitamente em casa na nação Galega. A sua História é a minha História, a sua paisagem é a minha paisagem, no sentido em que a reconheço, a sua gastronomia é a minha gastronomia. E sou descendente de galegos e de italianos. O meu bisavô era galego, um pintor de corte, mas também acrobata, que acabou no Palácio de Vila Viçosa a pintar. Donde, a minha ligação à Galiza é sanguínea, sanguineamente rubra. Dos autores galegos que li ao longo da minha poderei destacar, como não podia deixar de ser, Rosalía de Castro, da qual tenho a sua obra completa, mas também de Castelao, injustamente esquecido, de quem tenho a sua narrativa e teatro reunidos num só volume e o seu grande clássico «Sempre en Galiza» e ainda Viquera de quem tenho uma edição de 1974 dos seus Ensaios e poesias. Para além destes clássicos da literatura galega também tive contacto com a obra de Méndez Ferrín e, agora, através de ti, de muitos jovens poetas e escritores como Teresa Moure ou Alfredo Ferreiro.
You might also like
More from Entrevistas
À conversa com Luciene Carvalho | Carla Nepomuceno
Luciene Carvalho, a primeira mulher negra no Brasil a assumir a presidência de uma Academia de Letras
Tocar na palavra de forma viva | Sobre «Câmara de ar», de Hirondina Joshua
Câmara de ar (douda correria, 2023) é o último livro de Hirondina Joshua. Da Palavra Comum tivemos a honra de …