Manuel Meixide, natural de Chantada e professor de francês no ensino secundário, publicou em Agosto de 2015, sob o modelo de auto-edição na editora Artgerust, um livro intitulado “O mundo nasce em Chantada“. Agradecemos ao autor que tenha aceitado esta entrevista e o envio de seis textos do seu livro, que se reproduzem a continuação.
– Palavra Comum: Que representa para ti a poesia?
– Manuel Meixide: Antes de mais, a poesia é para mim algo indefinível com palavras. Se tivesse que dizer algo, diria que é o ar onde a palavra voa, onde a palavra se torna algo transcendente, onde a palavra deixa de ser palavra, é algo portanto mágico e misterioso. A poesia deve-nos puxar cara a emoção para, destarte, descobrirmos a Beleza e a Verdade. Mas pessoalmente para mim a poesia deve ser capaz de transformar o mundo interior, deve ser algo essencialmente político no sentido amplo da palavra, deve-nos puxar para a ação e o pensamento. O verdadeiro amor pola palavra é o amor por um mundo novo, a poesia não pode ser qualquer cousa extática, a poesia é sempre movimento, movimento cara a descoberta do autêntico, da essência, do que deve ser cultivado ou recuperado, amado ou rejeitado. Não há poesia sem ética. A poesia tem, portanto, uma força social e política incalculável, porquanto condensa na música de cada sílaba a força intrínseca e poderosa da linguagem. No plano quotidiano, quando escrevo poesia viajo a mundos distantes no tempo e no espaço, e são as próprias palavras as que me guiam, nunca sei onde elas me podem levar. O aspeto positivo da poesia para mim é que com ela descubro sempre novos territórios, territórios que após a criação poética posso reconhecer mais facilmente e que me tornam melhor pessoa. É por isto que ocupa um lugar importante na minha vida.
– Palavra Comum: Qual é a tua visão sobre a língua e a cultura galegas a dia de hoje?
– Manuel Meixide: Acho que estamos num momento de recuperação, após um periodo de forte espanholização. O reintegracionismo continua a avançar, também mediante o português como segunda língua estrangeira no ensino, e uma renascença da identidade em geral semelha inevitável. No plano coletivo, apesar do imperialismo espanhol, negamo-nos a morrer, a desaparecer. A conclusão é que temos de renascer em todos os âmbitos: político, cultural e social.
– Palavra Comum: Que projectos tens e quais gostarias chegar a desenvolver nalgum momento?
– Manuel Meixide: Estou a trabalhar num novo livro de poesia. Já tenho bastante material escrito, e espero gostar do resultado final.
POEMAS DE O MUNDO NASCE EM CHANTADA
A VOZ DA GALIZA
A Galiza dirá Galiza, e o orvalho ficará no ar, magicamente suspendido. A teia de prata inundará coa sua seda os ares da terra, e as rosas dormidas voarão ao encontro das gotas. A Galiza dirá Galiza, o trevo da Irlanda sairá da garganta, e a túnica dos druidas roçará as raízes dos carvalhos. O luar derramará o líquido quente no imóvel orvalho, o bardo esquecido cantará a cantiga da pátria, e todos os Estados morrerão. As árvores todas falarão, entre as gotas suspendidas as suas vozes veneráveis gritarão democracia. A Galiza dirá Galiza, e o sol abrirá a porta cinzenta das nuvens. A Galiza dirá Galiza, e o arco-íris pousará uma coluna no mar e a outra na montanha. A Galiza dirá Galiza e todos os braços confluirão num único abraço, o abraço de todos os carreiros livres, unidos pelo mesmo vento. Entre o orvalho mágico banhado de luar, através do arco-íris do mar e da montanha, pelo carreiro oculto, a túnica do druida mexida pelo vento chega à carvalheira e roça as raízes dos carvalhos. Todos os Estados morrerão. Todas as árvores falarão, entre as gotas suspendidas as suas vozes veneráveis gritarão: democracia!
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LOUVANÇA DO CARVALHO
Vivem longe as raízes do carvalho, longe das pólas onde as vaca-louras voavam. As pólas do carvalho namoravam algum dia coas pólas da cerdeira, fechavam juntas o céu co seu cálido beijo. Os longos cabelos do carvalho formavam um grande círculo perfeito, debuxavam uma ampla sombra até às fronteiras ósseas das raízes. As novas folhas da Primavera enchiam o corpo despido do carvalho co músculo brando e mágico, co instrumento musical tocado polo vento, co escultor prodigioso de miles de figuras umbríferas e oscilantes, amigas da terra. O frio e enorme esqueleto das ramagens unido ao tronco gris, semelhava um espetro gigante nos meses de Inverno, erguendo a sua imensa figura no céu cinzento da tarde, mexendo os seus infinitos braços no zoar violento, no naufrágio constante. A vasta cabeleira estival, guedelhas mestas e unidas, caía no pescoço do novo planeta, nascido no rico jardim aéreo, paraíso suspendido de brandos rumores, roseira enfeitiçada. Esse novo planeta, cova profunda e fresca talhada na superfície da luz e da sombra, virava lentamente arredor do sol, como um abessouro arredor da sua flor. Entrar nesse planeta era entrar num húmido Éden, onde o tempo se detinha e as nuvens brancas pairavam para sempre. Caindo como uma borboleta morta, a folha pousava o seu corpo lene no leito de folhas, abraçando o corpo das outras. As derradeiras pérolas verdes tornavam-se acastanhadas, metade noite e metade dia, a lua avançava nos estreitos e virgens carreiros, o luar completava o seu persistente meigalho e convertia a erva verde em efémera argila. Vivem longe as raízes do carvalho, longe das pólas onde as vaca-louras voavam. Hoje as pólas do carvalho estão cortadas.
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SEMPRE EM CHANTADA
Ao anjo sempre vivo
da minha avó materna.
Azul e verde, e alguma nuvem. No espelho do rio refletem-se os anjos. Asas brancas entre as montanhas sagradas. Baixam os anjos beber no copo das cepas o mel do vinho. A andorinha voa, deixando atrás o carreiro. Na sombra ampla dos carvalhos enlaçados, dorme o brando sono o leito dos fentos. A intensa água verde dos prados, é contida pola carícia da pedra dos valados. A porta da aira está aberta ao sol, e as borboletas vão beijando as margaridas. Gotas dum torrisco caem lentamente no lume, enquanto o papo-ruivo deambula polas ervas. No pórtico do corredor reverberam as cantigas dos cães. Pombas brancas pousam-se nas escadas do celeiro, na procura dalgum grão de milho. Desde a estreita boca da jerra cai a cascata do vinho, enceta o queijo o amado avô coa navalha, a faca penetra na peça de pão trigo. No mármore branco do mesado pousam-se os braços, uma ameixa madura cai dourada das pólas, o beijo de boas-noites da avó para seu neto estala doce no quarto. Azul e verde, e alguma nuvem. No espelho do rio refletem-se os anjos.
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DORME COMPOSTELA
Choram as pedras. Choram e choram. As luzes dos faróis alumeam as lágrimas. Os guarda-chuvas vão em procissão polas ruas. Os arcos abrem-se, as pombas voam, as fontes cantam. Não se pode nem se poderá nunca transcrever toda a poesia que cada laje agarima. Esta vila não precisa de poemas. Ela recita versos únicos em cada recanto, em cada praça. Só há que caminhar e escoitar. Esperar que chegue a noite. Que o luar se funda em Compostela, e fecunde magicamente a donzela calada, a dormir no seu leito de pedra, circundado polas gárgulas. Quando já nenhum passo componha a sua molhada melodia, quando só o silêncio dos arcos e dos telhados nos abrace, perdidos no labirinto pétreo da beleza, se as estrelas alumeam o céu e o luar beija o rosto da donzela, Compostela calará, já não recitará mais poemas, Compostela dormirá nos braços do luar, e então será ainda muito mais bela. Olharemo-la adormecer, sem poder mover o corpo, seremos pedra coa pedra e calaremos, nós também calaremos.
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ORVALHO DOURADO
Aos meus dous filhos, Roi e Artur
Orvalho dourado
caindo nos fentos
e nas folhas dos carvalhos.
Brilha o maná do céu
esparegendo o seu alimento
em cada parte do espaço.
Penetra lentamente
desde o palácio de ouro a sua luz,
abrindo todas as janelas
até chegar à terra
que respira o novo néctar.
Orvalho dourado
levado pela barca do vento
duma beira para outra
na ribeira do silêncio.
Caladamente voa
e abraça a carvalheira
co teu abraço húmido,
pousa-te no verde musgo
de cada tronco,
alouminha a doce esponja
coa tua terna língua,
toca a harpa muda
das gotas sobre as pólas.
Desce coas tuas asas
para aninhar em cada cimo,
faz o teu ninho refulgente
no lar cálido das sombras,
verte a tua luz dourada
entre as escuras ramagens.
Cai orvalho dourado,
calado pássaro de luz.
Tece no silêncio
cos teus fios de ouro o belo encaixe
de cada tronco e de cada folha:
não deixes de tocar
a inconcebível melodia da vida.
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MÃE DA LIBERDADE
Ao Afonso de Cartelos.
Aldeia amada,
vem salvar-nos do progresso.
Vem salvar-nos do Estado assassino.
Vem salvar-nos do crime perpétuo.
Na tua fonte pura
quero eu lavar a minha cara.
Na luz das tuas estrelas
quero eu construir minha morada.
Aqui quero viver,
no berço da liberdade.
Se tu morreres,
o mundo seria um escravo
com cadeias para sempre nos seus braços.
Só em ti há verdadeira riqueza,
próspera terra de homens livres,
pátria da paz entre os povos,
mãe da palavra liberdade.
Aldeia escrava,
torna-te livre,
torna o mundo livre!