Às vezes encontra-se um livro que se converte, logo ao começar a lê-lo, em sujeito de releitura, instrumento de consulta.
Há uns meses tive o prazer de escutar na Livraria Suévia da Corunha o professor Higino Martins Esteves. Encontrava-o nesta banda do Atlântico quando não muito tempo atrás o encontrara além do Oceano, em Buenos Aires, concretamente na Federação de Sociedades Galegas, onde ele ensina “português da Galiza”.
A Higino Martins e a mim unem-nos muitos pensamentos e sentimentos sobre o país que passou a ser impaís, a Galiza, e sobre um despaís que não consegue sair dessa condição, a Argentina. Temos paixão comum pelos nomes das coisas, das pessoas e das famílias, com a diferença de que ele é um profissional das línguas humanas e eu só cheguei a conhecer as línguas de máquina inteligente.
Ainda mais, diria eu que ambos temos tendência natural para chamarmos a atenção e fazermos advertência. Salvando grandes distâncias na Ciência e no tempo, atrevo-me a dizer que o professor Martins se parece a Darwin como eu me pareço a Wallace. Ele tem imenso conhecimento das línguas vivas e mortas; eu ando a tomar nota do que vejo e escuto.
Por exemplo, desta volta na Corunha assinalei-lhe que Martins é apelido com muito escassa presença no Impaís Levitante, enquanto as formas Martiz e Martís conseguiram resistir à castelhanização como Martínez. Nas necrologias publicadas nos jornais galegos aparecem repetidos os <<Sr. Fulano Martínez… “de Martiz” u “de Casa Martís>>. Não registo Martins nestes casos.
A resposta do amigo Higino (Martínez segundo os papelinhos de imigração familiar à Argentina) ao respeito teve a ver como o que ele considera que corresponderia aos pagos de onde procede, à zona onde “filho de Martim” dera em Martins…
Nada a criticar. Higino Martins Esteves (não Estévez, que poderia ser, pois não há tanto que as formas de patronímicos galegos e portugueses coincidiam) é um homem matemático, como são todos os filólogos: a Filologia é ciência estrita, de vectores de força…
E é assim, matematicamente, como está redigido um tratado fundamental para mim, que lá se apresentava na Suévia corunhesa: Etimologias obscuras ou esconsas. Advertiu-nos o autor de que a obra era para ser lida “a modinho”, aos poucos, hoje um par de vozes, amanhã outro par delas… e isso fiz eu, durante uns meses e em diversos lugares. O livro de Mestre Martins veio comigo, foi lido em cabines de avião e camas de hotel. Afinal, chegando à palavra “Varela”, tinha a sensação que sempre tenho quando gosto dum romance: não quero que acabe. Mas acabava uma longa ladainha de palavras ordenadas de maneira alfabética, e alfabeticamente espremidas pelo professor argentino que se define galego.
Acabei o livro e volvi sobre ele, às páginas que assinalara com marcadores diversos, de cartões de embarco a pedacinhos de guardanapo. Algumas etimologias ficaram-me gravadas a fogo, como a de “Portugal”, que jamais teria eu relacionado com Vila Nova de Gaia se não fosse pelo tratado de Martins Esteves.
A tese do professor, subjacente em toda a obra, é que a gente da Península Ibérica falava língua céltica ate ao século XI, de forma que uma imensa quantidade de vocábulos que admitimos como vindo do Latim corrupto para as falas romances realmente já foram recolhidos desde a fala do povo para a língua do Império.
Foi assim? Assim o defende o investigador com teimosia e referências que nos levam a idiomas provados e ideados. É um prazer grande seguir-lhe o fio dos razoamentos até acertar nas origens de qualquer termo, desde o verbo “abraiar” ao apelido “Vásquez” (ou “Vasques”). Como uma máquina disposta a derrubar muros erguidos por velhas auctoritates (incluído Coromines, a quem dá cancha frequentemente), o gênio de Higino Martins muda o mapa da Gallaecia e mesmo da Hispania. Depois de lermos Etimologias obscuras ou esconsas esse mapa nunca será como foi. Mesmo fica aberto para provocadas destruições. O Mestre deixa discípulos.
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