A nossa vida não está submetida à natureza. O ser humano desconhece a tirania ou a comodidade do instinto. Há uns meses, uma amiga contou-me a história de uma sedução: nas terras montanhesas da província de Ourense, minha amiga passeava entre rios e bosques, quando subitamente deparou com uma rês que, estranhamente paralisada, fitava o profundo da maleza, na impossível atitude de um cão caçador. A poucos metros de uma sebe, a vaca estacara e ficara como que em transe.
O homem que cuidava o gado apercebeu-se imediatamente e, num arrebato de fúria e terror, correu até o animal, a gritar: fora! escapa lobo! O lobo estava agachado, com efeito, atrás da sebe e, de modo a caçar a vaca, começara a brincar com as suas orelhas, erguendo-as e abaixando-as, num esquisito ritual hipnótico. A vaca ficara paralisada no jogo, fatalmente prendida num círculo de sedução e fascínio.
O lobo não pode evitar ser lobo, e a vaca há-de entrar no círculo da sua vida e no da sua morte. Mas a voz humana pode romper o circuito fechado do sofrimento, que ameaça com paralisar-nos ou bem com lançar-nos ao papel de devoradores de outros. A voz radical, palpitante, obscura, fundamentalmente humana.
[Publicado na revista Poseidónia, nº 1, Corunha: 1998. Na rede em Çopyright 60]
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